São Paulo, Sexta-feira, 10 de Dezembro de 1999


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CRÍTICA
Semicolcheia profana

TOM ZÉ
especial para a Folha


No início, aparece o que Heraldo do Monte, guitarrista e estudioso, chama de "escala húngara" -uma espécie de beija-pé armorial. Valha-me, Nossa Senhora!
Na terceira faixa, o CD entra num ritmo interessante, numa sucessão de coco, reisado. Compreendi: Antúlio, antes da rasteira rítmica, nos desarma, para a seguir trespernambucar-nos, aos pobres de nós, sem piedade.
Porque, com exceção de Suassuna, Pernambuco é semicolcheia. Calma, nada de dicionários: semicolcheia é um oitavo do tempo que o diabo leva para estourar, com o fedor de enxofre que lhe compete, no momento em que o papa Gregório 4º o flagra entrando na sacristia de Olinda e lhe bota a cruz na cara.
Antúlio Madureira mostrará, junto a sua orquestra Perré-Bumbá, que semicolcheia é sinônimo poético de Pernambuco.
Em João Cabral, quando o canto de multíplices galos ergue o tecido do amanhecer de Recife, cada um emprega ao menos uma semicolcheia bem no centro de seu conhecido canto de galo. Imite-lhe o canto, assim: "Cocorocó". O "coró" contém uma semicolcheia -ela é o eixo em que gira Pernambuco.
Frevo, que tem central, no umbigo, a semicolcheia. Ouça e diga: "fre-vo". Tente pronunciar sem um ligeiro tremor no corpo. Esse tremelique é a semicolcheia.
É assim que Antúlio afia lâmina atrás da moita. O ouvinte se regozija com o pernambuquismo: tem "Azulão", de Manuel Bandeira e Jayme Ovalle, e "Assum Preto", de Gonzaga e Teixeira.
Nessa altura, eu preciso, segundo a contemporaneidade, encontrar algo de que fale mal. Não pense que é possível viver mistérios gozozos com este "Mourama" tão abertamente, ofendendo a moda, segundo a qual prazer estético e carinho são vergonhas proibidas.
Então, vamos lá, à faixa 12, arranjo de "Lamento Sertanejo", de Dominguinhos. Falo mal porque Madureira emprega as flautas de pífano, que, com seus graus da escala naturalmente alterados, dão uma sonoridade rascante, arranham a sensibilidade auditiva. Em sua síntese de fabricação, elas não foram planejadas para o mundo da tonalidade e das modulações, mas para um mundo de harmonia mais simples.
Orquestra competente, a Perré-Bumbá. No Recife, para ser músico é preciso ser bom. Não é qualquer fazedor de acorde que dá conta da música da terra.
Ao terminar de ouvir o disco, benza-se. Melhor não mencionar ao poeta Suassuna, tão comovente mas tão indignado, que você andou em conjunção carnal com tanta semicolcheia. Percebe-se, exalando do toca-discos, um cheiro de enxofre. Não se preocupe. Foi o diabo que estourou.


Avaliação:     


Disco: Mourama Quanto: R$ 20, em média

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