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CRÍTICA
Semicolcheia profana
TOM ZÉ
especial para a Folha
No início,
aparece o que
Heraldo do
Monte, guitarrista e estudioso, chama de
"escala húngara" -uma espécie
de beija-pé armorial. Valha-me,
Nossa Senhora!
Na terceira faixa, o CD entra
num ritmo interessante, numa
sucessão de coco, reisado. Compreendi: Antúlio, antes da rasteira
rítmica, nos desarma, para a seguir trespernambucar-nos, aos
pobres de nós, sem piedade.
Porque, com exceção de Suassuna, Pernambuco é semicolcheia. Calma, nada de dicionários: semicolcheia é um oitavo do
tempo que o diabo leva para estourar, com o fedor de enxofre
que lhe compete, no momento
em que o papa Gregório 4º o flagra entrando na sacristia de Olinda e lhe bota a cruz na cara.
Antúlio Madureira mostrará,
junto a sua orquestra Perré-Bumbá, que semicolcheia é sinônimo
poético de Pernambuco.
Em João Cabral, quando o canto de multíplices galos ergue o tecido do amanhecer de Recife, cada um emprega ao menos uma
semicolcheia bem no centro de
seu conhecido canto de galo. Imite-lhe o canto, assim: "Cocorocó".
O "coró" contém uma semicolcheia -ela é o eixo em que gira
Pernambuco.
Frevo, que tem central, no umbigo, a semicolcheia. Ouça e diga:
"fre-vo". Tente pronunciar sem
um ligeiro tremor no corpo. Esse
tremelique é a semicolcheia.
É assim que Antúlio afia lâmina
atrás da moita. O ouvinte se regozija com o pernambuquismo: tem
"Azulão", de Manuel Bandeira e
Jayme Ovalle, e "Assum Preto",
de Gonzaga e Teixeira.
Nessa altura, eu preciso, segundo a contemporaneidade, encontrar algo de que fale mal. Não pense que é possível viver mistérios
gozozos com este "Mourama" tão
abertamente, ofendendo a moda,
segundo a qual prazer estético e
carinho são vergonhas proibidas.
Então, vamos lá, à faixa 12, arranjo de "Lamento Sertanejo", de
Dominguinhos. Falo mal porque
Madureira emprega as flautas de
pífano, que, com seus graus da escala naturalmente alterados, dão
uma sonoridade rascante, arranham a sensibilidade auditiva.
Em sua síntese de fabricação, elas
não foram planejadas para o
mundo da tonalidade e das modulações, mas para um mundo de
harmonia mais simples.
Orquestra competente, a Perré-Bumbá. No Recife, para ser músico é preciso ser bom. Não é qualquer fazedor de acorde que dá
conta da música da terra.
Ao terminar de ouvir o disco,
benza-se. Melhor não mencionar
ao poeta Suassuna, tão comovente mas tão indignado, que você
andou em conjunção carnal com
tanta semicolcheia. Percebe-se,
exalando do toca-discos, um cheiro de enxofre. Não se preocupe.
Foi o diabo que estourou.
Avaliação:
Disco: Mourama
Quanto: R$ 20, em média
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