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ARTIGO
Stockhausen injetou poética na eletrônica
LIVIO TRAGTENBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA
O homem foi a música e a
música foi o homem.
Karlheinz Stockhausen (1928-2007) era um missionário. Missionário de Sirius,
entenda-se. Desde meados dos
anos de 1950, injetou poética
na música eletrônica que ajudou a criar, abrindo novos horizontes para uma técnica ainda
embrionária que utilizava osciladores, geradores de freqüências, fitas magnéticas etc. Um
arsenal que hoje soa jurássico.
Muito do playground da moçada de música eletrônica de
pista deriva de pesquisas de
compositores como Stockhausen, pioneiro na exploração sonora da eletrônica.
Abrigava uma personalidade
complexa que combinava uma
austeridade protestante, germânica, obstinada -na qual
não cabia a possibilidade de reconhecer John Cage como músico em seu sistema de valores-, com um pan-misticismo
astrológico. Nesse pêndulo,
construiu uma das obras mais
importantes da música.
Em sua passagem pelo Rio de
Janeiro, em 1988, para uma série de concertos, Stockhausen
confessou a mim e a Haroldo de
Campos (que estava tomado
por uma alegria juvenil com a
oportunidade de encontro e audição de suas músicas), que era
um enviado da estrela Sirius, o
sol central de nosso universo.
Isso, pronunciado com tamanha seriedade e serenidade, pareceu-nos, naquele momento,
uma coisa bastante plausível e
natural.
Estava no Rio para assistir os
concertos, que reportei para a
Folha, e também para pesquisar o canto de Sinagoga, que iria
utilizar na música do espetáculo "A Cena da Origem" com as
traduções de Haroldo.
Comentei sobre essa tradição com Stockhausen, que animado me disse: "Mas essa é
uma das músicas que escuto na
minha cabeça!"
Cultura alemã
Tinha uma alma ampla, na
qual também habitavam alguns
fantasmas da cultura alemã:
Bach, o Patrono, de família
grande, com filhos músicos, assim como ele, cujos filhos Simon e Markus têm carreiras
musicais sólidas atuando em
áreas como o jazz moderno e o
pop (no caso de Simon).
Outro aspecto o aproximava
do velho mestre de Leipzig: administrava sua música e carreira como uma empresa. Propôs-me que recebesse um Centro de Documentação de sua obra
que estava doando para universidades mundo afora.
Outro fantasma era Richard
Wagner, de quem comungava
uma certa aspiração a Deus,
criando a própria cosmogonia
através de um extenso ciclo
operístico.
Naquela passagem pelo Rio,
Simon, em uma escapada da rotina espartana de ensaios, mostrou-me algumas gravações de
sua banda pop em que cantava
e tocava sintetizadores.
O som era bem distante do
universo paterno, mais para
Michael Jackson. Queria alçar
vôo próprio, mas parece que a
coisa não vingou, e seguiu trabalhando com o pai nesses
anos.
Numa ensolarada manhã de
domingo, finda a série de concertos, num encontro informal
na casa da compositora Jocy de
Oliveira (que também promovia a sua vinda), ofereci-lhe
uma caipirinha com a melhor
cachaça.
Sereno, me respondeu: "Necessito de meu cérebro 100%
funcionando todo o tempo".
Esse era o homem. Só nos cabe
desejar-lhe uma sonora viagem
de volta à estrela Sirius.
LIVIO TRAGTENBERG é músico e compositor
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