São Paulo, segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

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ARTIGO

Stockhausen injetou poética na eletrônica

LIVIO TRAGTENBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA

O homem foi a música e a música foi o homem. Karlheinz Stockhausen (1928-2007) era um missionário. Missionário de Sirius, entenda-se. Desde meados dos anos de 1950, injetou poética na música eletrônica que ajudou a criar, abrindo novos horizontes para uma técnica ainda embrionária que utilizava osciladores, geradores de freqüências, fitas magnéticas etc. Um arsenal que hoje soa jurássico.
Muito do playground da moçada de música eletrônica de pista deriva de pesquisas de compositores como Stockhausen, pioneiro na exploração sonora da eletrônica.
Abrigava uma personalidade complexa que combinava uma austeridade protestante, germânica, obstinada -na qual não cabia a possibilidade de reconhecer John Cage como músico em seu sistema de valores-, com um pan-misticismo astrológico. Nesse pêndulo, construiu uma das obras mais importantes da música.
Em sua passagem pelo Rio de Janeiro, em 1988, para uma série de concertos, Stockhausen confessou a mim e a Haroldo de Campos (que estava tomado por uma alegria juvenil com a oportunidade de encontro e audição de suas músicas), que era um enviado da estrela Sirius, o sol central de nosso universo. Isso, pronunciado com tamanha seriedade e serenidade, pareceu-nos, naquele momento, uma coisa bastante plausível e natural.
Estava no Rio para assistir os concertos, que reportei para a Folha, e também para pesquisar o canto de Sinagoga, que iria utilizar na música do espetáculo "A Cena da Origem" com as traduções de Haroldo.
Comentei sobre essa tradição com Stockhausen, que animado me disse: "Mas essa é uma das músicas que escuto na minha cabeça!"

Cultura alemã
Tinha uma alma ampla, na qual também habitavam alguns fantasmas da cultura alemã: Bach, o Patrono, de família grande, com filhos músicos, assim como ele, cujos filhos Simon e Markus têm carreiras musicais sólidas atuando em áreas como o jazz moderno e o pop (no caso de Simon).
Outro aspecto o aproximava do velho mestre de Leipzig: administrava sua música e carreira como uma empresa. Propôs-me que recebesse um Centro de Documentação de sua obra que estava doando para universidades mundo afora.
Outro fantasma era Richard Wagner, de quem comungava uma certa aspiração a Deus, criando a própria cosmogonia através de um extenso ciclo operístico.
Naquela passagem pelo Rio, Simon, em uma escapada da rotina espartana de ensaios, mostrou-me algumas gravações de sua banda pop em que cantava e tocava sintetizadores.
O som era bem distante do universo paterno, mais para Michael Jackson. Queria alçar vôo próprio, mas parece que a coisa não vingou, e seguiu trabalhando com o pai nesses anos.
Numa ensolarada manhã de domingo, finda a série de concertos, num encontro informal na casa da compositora Jocy de Oliveira (que também promovia a sua vinda), ofereci-lhe uma caipirinha com a melhor cachaça. Sereno, me respondeu: "Necessito de meu cérebro 100% funcionando todo o tempo".
Esse era o homem. Só nos cabe desejar-lhe uma sonora viagem de volta à estrela Sirius.


LIVIO TRAGTENBERG é músico e compositor


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