São Paulo, quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

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MARCELO COELHO

Receita certa para o fracasso


O enredo pode sugerir um paralelo com o que aconteceu durante os anos do governo Bush

ENCERRADO O CASO, o diretor da CIA pergunta ao seu subordinado: "Afinal, o que aprendemos com tudo isso?".
O assessor não sabe responder. O chefe continua: "Bem, talvez tenhamos aprendido a não fazer mais esse tipo de coisa". Ele próprio, contudo, se corrige: "Só que não fizemos coisa nenhuma!".
É com esse diálogo que termina "Queime Depois de Ler", comédia dos irmãos Coen que entrou em cartaz há pouco tempo em São Paulo.
Na sessão em que eu estava, o público demorou para sair da sala; de algum modo, ficamos sem saber o que concluir da engraçada, im- probabilíssima e genial aventura imaginada pela dupla de diretores e roteiristas.
"Queime Depois de Ler": o título sem dúvida se aplica às próprias sensações de quem acaba de ver o filme.
Como costuma acontecer nas histórias dos Coen, alguns personagens nada inteligentes resolvem dar um grande golpe. Tudo dá errado, terminando em violência e morticínio.
A história, assim, fecha-se em si mesma, parecendo engolir seus participantes num abismo de escuridão, anonimato e sangue.
Visto desse modo, em linhas gerais, o enredo pode sugerir um paralelo com o que aconteceu durante os oito anos do governo Bush. Planos supostamente geniais, levados adiante por um grupo de palermas, resultam numa sucessão de crimes e atos de violência sem sentido.
Ocorre que, em "Queime Depois de Ler", os funcionários mais qualificados da espionagem americana são a única reserva de bom senso em toda a história. A estupidez e o ridículo vêm do cidadão comum.
Dois patetas de uma academia de ginástica julgam ter encontrado arquivos importantes da CIA. Na verdade, são apenas documentos sem importância de um agente que acaba de ser demitido.
A falta de significado daqueles arquivos parece refletir, em ponto menor, o absurdo da trama em seu conjunto. Mais que isso, talvez: o que se sente, na atitude de vários personagens, é uma desorientação de outra ordem.
Não seria exagero, acho, identificar essa "falta de significado" ao colapso dos esquemas mentais vigentes durante a Guerra Fria. Peço desculpas se dou mais alguns detalhes do enredo, mas, de qualquer modo, as complicações são tantas que imagino não estragar o prazer de ninguém.
John Malkovich, no papel do ex-agente da CIA, tenta escrever suas memórias; perde-se em clichês e lamenta, de forma entrecortada, o declínio da instituição a que serviu
Brad Pitt e Frances McDormand, impagáveis (até demais) como funcionários da academia de ginástica, não sabem direito o que fazer com os dados supostamente confidenciais que encontraram. Recorrem ao lugar-comum: por que não falar com os russos?
George Clooney, esbanjando simpatia e falta de caráter, é um policial que nunca teve de usar a própria arma.
Todos estão à solta, por assim dizer, num ambiente em que o inimigo clássico dos Estados Unidos já desapareceu.
Não há dúvida de que, depois do 11 de Setembro, reviveu-se o clima de paranóia típico dos anos 50. O problema, entretanto, é que o terrorismo internacional não funciona do jeito conhecido.
Uma coisa é viver em estado de tensão permanente com algumas nações hostis; outra é ver o inimigo deslocar-se de um país para outro, numa espécie de esconde-esconde em que Afeganistão e Iraque logo cedem lugar ao Irã, ao Paquistão ou a qualquer novo perigo em potencial.
A julgar pelo filme dos Coen, a paranóia acaba sendo introjetada para o plano doméstico. Maridos e mulheres se espionam mutuamente.
Encontros amorosos via internet resultam num contínuo jogo de olhares oblíquos, dúvidas de identidade, atuações suspeitas, segredos que os personagens tentam manter com incomensurável canastrice.
Todos, afinal, parecem se comportar como agentes secretos. Nada mais previsível, nessa situação, do que viverem em constante crise de identidade. Não sabem direito quem são, nem quais os seus limites pessoais. Não por acaso, muito da trama gira em torno de um desejo comuníssimo: uma personagem está obcecada pela idéia de fazer cirurgia plástica.
Está longe de ser um capricho absurdo. Queremos sempre mudar de pele e de personalidade. O que aprendemos com "Queime Depois de Ler"? Talvez, apenas, a não exagerar na burrice quando tentamos realizar esse desejo.

coelhofsp@uol.com.br


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