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Ilustrada 50 anos
Função da arte não é fazer política, diz Gullar
Poeta revê posições dos anos 60 e Caetano diz que "Cronicamente Inviável" é "abacaxi"
O peso do mercado na vida cultural, encerrado o
período da ditadura militar e o ciclo das utopias
de esquerda, esteve no centro do debate "Cultura e Política", que aconteceu anteontem à noite,
no auditório do Masp. Mediado pelo jornalista Fernando de
Barros e Silva, editor de Brasil, o debate, primeiro de uma série de três, faz parte das comemorações dos 50 anos da Ilustrada. A psicanalista Maria Rita Kehl destacou que o mercado passou a pautar opiniões sobre a produção cultural numa
lógica segundo a qual "as coisas têm valor porque se vendem".
O compositor Caetano Veloso, que começou o debate tentando lembrar, em vão, um trecho de seu livro "Verdade Tropical", foi em sentido contrário: "A gente, que trabalha nessas
criações mais vendáveis, enfrenta uma perversão oposta: há
uma idéia de que uma coisa não é boa porque vende". O poeta
e colunista da Folha Ferreira Gullar, que arrancou risos da
platéia, disse que as relações entre arte e política, como aconteceram nos anos 60, já não fazem o mesmo sentido. Já o cineasta Cacá Diegues, ao destacar o papel da tecnologia, afirmou que a pirataria não é um problema de polícia.
DA REPORTAGEM LOCAL
POLÍTICA E MERCADO (MARIA RITA)
Nos anos 80, com velocidade
espantosa, o Brasil fez uma passagem da frase do [oficial nazista Hermann] Goehring
("Quando ouço falar em cultura, eu puxo um revólver", que
vigorou por aqui por 20 anos)
para a frase do magnata americano parodiada por Michel Piccoli no filme ["Desprezo"] do
Godard ("Quando ouço falar
em cultura, puxo meu talão de
cheque"). O Brasil entrou na
era do mercado. Na época, a
Ilustrada abraçou com alegria
a relação entre a cultura e o talão de cheque. O mercado resolveria o problema da cultura.
A lógica de mercado aplicada à
cultura vai criando uma reversão: começamos com a idéia de
que as coisas se vendem porque
têm valor e, após algum tempo,
passamos a acreditar que elas
têm valor porque se vendem.
MERCADO E CRÍTICA (CAETANO)
Acho que a crítica do mercado,
que é muito inspirada naquela
posição dos frankfurtianos, sobretudo em Adorno, no fim das
contas é inautêntica. Muitos
jornalistas que citam Adorno, e
contra a indústria cultural, se
tornam criaturas pop na própria imprensa. E fica uma contradição: você fica esperando
dali uma produção de grande
arte, de arte fina, e não sai nada.
Às vezes, você vai ouvir a banda
Calypso e, além de estar revolucionando o modelo de distribuição, o modelo industrial e
comercial da música popular,
eles podem apresentar uma solução tanto de espetáculo
quanto de composição e canto
que atende a um interesse
maior do que uma pretensão
como essa. O Paulo Francis, por
exemplo, era um cara pop que
escreveu péssimos romances.
POLÍTICA X ARTE (GULLAR)
Eu aprendi, errei, fui dos que
mais erraram, fui sectário numa porção de coisas. À certa altura, comecei a ver que podia
fazer poesia política com uma
qualidade igual a de outro qualquer. Bastava não me contentar em ficar fazendo denúncia.
Tinha de refletir mais fundo
nas questões [...]. Hoje a visão
que tenho é que uma obra de
arte já tem função social, independentemente do conteúdo
político. A função da arte é ajudar a inventar o mundo, a vida.
A arte existe pois a vida é pouca.
E essa função é satisfatória.
POLÍTICA E MÚSICA (CAETANO)
A política possível de se detectar na produção e na apreciação
de música, e de criação artística, em geral, não está onde a
princípio a buscamos, mas
nunca está realmente ausente.
Procuro auscultar a política do
surgimento de modos de produção de música popular que
vieram no rastro da reprodutibilidade digital e da difusão via
internet: tecnobrega de Belém,
funk carioca, arrocha na Bahia.
E dos fenômenos de massa que
mudam a direção dos ventos da
informação entre regiões e
classes do Brasil: axé, sertanejo
e pagode. E suas relações com a
massa crítica da produção sofisticada e da crítica ambiciosa.
CULTURA E DIVERSIDADE (MARIA RITA)
Nos anos 70, aqui no Brasil,
período em que fui jornalista,
como a indústria era muito cara, e gravar um disco era uma
coisa cara, chegamos a imaginar que só iria haver um tipo de
rock, de samba, nada mais, iria
acabar a diversidade. A coisa de
poder divulgar a música pela
internet, mesmo o CD, que já é
tecnologia mais simples, permitiu o contrário. No Brasil, começou a aparecer música de tudo quanto é lado. Estou pensando nos meninos do Cordel
do Fogo Encantado. Se eles dependessem da indústria cara,
como era até os anos 70 e 80,
não estavam tocando, eu não
conheceria. Há questão tecnológica que favorece essa menor
dependência do artista na música do grande mercado. Agora,
o cinema é mais complicado, é
uma indústria ainda cara.
MERCADO E PIRATARIA (CACÁ)
Não sou muito contra a pirataria, não. A pirataria no cinema
não é questão policial, mas social. O cara quer consumir
aquele produto e não tem poder aquisitivo. Então ele vai e
compra pirata. Um amigo meu,
o cineasta Sílvio Tendler, foi ao
Vietnã fazer um documentário
e voltou com um presente. Ele
comprou um DVD pirata de
"Tieta". Fiquei felicíssimo,
imagina um vietnamita vendo
"Tieta". A gente não pode botar
polícia na rua para enfrentar isso, impedir que o mundo avance. Vejo um cenário possível
para o cinema: com a digitalização, os filmes vão ser exibidos
através de linha telefônica. Não
tem cópia, certos gastos com
mão-de-obra etc. Vai ser tão
barato que pode ser que o filme
passe a ser coisa de graça para
vender o resto em volta. Para
vender o comercial da sala de
cinema, a camiseta, a pipoca
mais cara do mundo, a Coca-Cola mais cara do mundo etc.
A INVENÇÃO DO INTELECTUAL (CACÁ)
O intelectual é basicamente
uma invenção do final do século 19, que se torna uma coisa
importante nas sociedades ocidentais a partir do século 20.
Ele sempre esteve misturado à
política e nunca vai deixar de
estar. É na segunda metade do
século 20 que aparece, nas sociedades ocidentais, o intelectual orgânico, que é uma novidade e submete sua visão de
mundo, sua visão do ofício que
ele pratica ao programa político e doutrinário de determinado partido ou grupo político.
Quando isso aconteceu na ditadura brasileira, foi muito bem-vindo, porque, numa ditadura,
todo mundo é contra. O perigoso é a democracia, porque aí cada um tem de pensar por si
mesmo. Aí começaram a surgir
as dúvidas sobre a relação entre
cultura e política. De certo modo, o intelectual virou servidor
público, a serviço de determinada causa, idéia ou partido.
CAETANO X ROBERTO SCHWARZ
Não consigo ver sentido nas escolhas do [crítico] Roberto
Schwarz [em entrevista à Folha em 2007]: Chico Alvim,
"Subúrbio" [de Chico Buarque]
e "Cronicamente Inviável" [de
Sérgio Bianchi]. Detesto "Cronicamente Inviável", acho o filme uma porcaria, um abacaxi
de caroço. A música de Chico é
bonita, mas não é uma canção
que criticamente possa ser um
exemplo [positivo]. Não sinto
uma verdadeira realidade de
curtição artística nessas escolhas do Schwarz.
QUALIDADE NÃO TEM JUIZ (GULLAR)
Não tem juiz para dizer [o que
tem qualidade ou não], mas
existe uma experiência acumulada que permite que o Caetano, o Gil, o Chico saibam o que é
qualidade. Agora, existe gosto
por uma outra música, que não
tem a mesma qualidade, e que
vende. Vai dizer que o Paulo
Coelho não é escritor? É sim. É
mais do que aquele cirurgião
plástico [Ivo Pitanguy] que está
na Academia Brasileira de Letras. [A idéia de que todo mundo é igual] nasceu com o marxismo. Mas as pessoas não são
iguais. Elas são iguais em direitos, mas não em qualidade. As
pessoas são diferentes e o mundo é mutirão. Porque o Oscar
Niemeyer desenha o edifício
dele, mas sem o pedreiro, vai ficar no papel.
Assista ao vídeo do debate
de segunda-feira
www.folha.com.br/083432
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