São Paulo, quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

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Ilustrada 50 anos

Função da arte não é fazer política, diz Gullar

Poeta revê posições dos anos 60 e Caetano diz que "Cronicamente Inviável" é "abacaxi"

O peso do mercado na vida cultural, encerrado o período da ditadura militar e o ciclo das utopias de esquerda, esteve no centro do debate "Cultura e Política", que aconteceu anteontem à noite, no auditório do Masp. Mediado pelo jornalista Fernando de Barros e Silva, editor de Brasil, o debate, primeiro de uma série de três, faz parte das comemorações dos 50 anos da Ilustrada. A psicanalista Maria Rita Kehl destacou que o mercado passou a pautar opiniões sobre a produção cultural numa lógica segundo a qual "as coisas têm valor porque se vendem".
O compositor Caetano Veloso, que começou o debate tentando lembrar, em vão, um trecho de seu livro "Verdade Tropical", foi em sentido contrário: "A gente, que trabalha nessas criações mais vendáveis, enfrenta uma perversão oposta: há uma idéia de que uma coisa não é boa porque vende". O poeta e colunista da Folha Ferreira Gullar, que arrancou risos da platéia, disse que as relações entre arte e política, como aconteceram nos anos 60, já não fazem o mesmo sentido. Já o cineasta Cacá Diegues, ao destacar o papel da tecnologia, afirmou que a pirataria não é um problema de polícia.

DA REPORTAGEM LOCAL

POLÍTICA E MERCADO (MARIA RITA)

Nos anos 80, com velocidade espantosa, o Brasil fez uma passagem da frase do [oficial nazista Hermann] Goehring ("Quando ouço falar em cultura, eu puxo um revólver", que vigorou por aqui por 20 anos) para a frase do magnata americano parodiada por Michel Piccoli no filme ["Desprezo"] do Godard ("Quando ouço falar em cultura, puxo meu talão de cheque"). O Brasil entrou na era do mercado. Na época, a Ilustrada abraçou com alegria a relação entre a cultura e o talão de cheque. O mercado resolveria o problema da cultura.
A lógica de mercado aplicada à cultura vai criando uma reversão: começamos com a idéia de que as coisas se vendem porque têm valor e, após algum tempo, passamos a acreditar que elas têm valor porque se vendem.

MERCADO E CRÍTICA (CAETANO)

Acho que a crítica do mercado, que é muito inspirada naquela posição dos frankfurtianos, sobretudo em Adorno, no fim das contas é inautêntica. Muitos jornalistas que citam Adorno, e contra a indústria cultural, se tornam criaturas pop na própria imprensa. E fica uma contradição: você fica esperando dali uma produção de grande arte, de arte fina, e não sai nada.
Às vezes, você vai ouvir a banda Calypso e, além de estar revolucionando o modelo de distribuição, o modelo industrial e comercial da música popular, eles podem apresentar uma solução tanto de espetáculo quanto de composição e canto que atende a um interesse maior do que uma pretensão como essa. O Paulo Francis, por exemplo, era um cara pop que escreveu péssimos romances.

POLÍTICA X ARTE (GULLAR)

Eu aprendi, errei, fui dos que mais erraram, fui sectário numa porção de coisas. À certa altura, comecei a ver que podia fazer poesia política com uma qualidade igual a de outro qualquer. Bastava não me contentar em ficar fazendo denúncia.
Tinha de refletir mais fundo nas questões [...]. Hoje a visão que tenho é que uma obra de arte já tem função social, independentemente do conteúdo político. A função da arte é ajudar a inventar o mundo, a vida.
A arte existe pois a vida é pouca.
E essa função é satisfatória.

POLÍTICA E MÚSICA (CAETANO)

A política possível de se detectar na produção e na apreciação de música, e de criação artística, em geral, não está onde a princípio a buscamos, mas nunca está realmente ausente.
Procuro auscultar a política do surgimento de modos de produção de música popular que vieram no rastro da reprodutibilidade digital e da difusão via internet: tecnobrega de Belém, funk carioca, arrocha na Bahia.
E dos fenômenos de massa que mudam a direção dos ventos da informação entre regiões e classes do Brasil: axé, sertanejo e pagode. E suas relações com a massa crítica da produção sofisticada e da crítica ambiciosa.

CULTURA E DIVERSIDADE (MARIA RITA)

Nos anos 70, aqui no Brasil, período em que fui jornalista, como a indústria era muito cara, e gravar um disco era uma coisa cara, chegamos a imaginar que só iria haver um tipo de rock, de samba, nada mais, iria acabar a diversidade. A coisa de poder divulgar a música pela internet, mesmo o CD, que já é tecnologia mais simples, permitiu o contrário. No Brasil, começou a aparecer música de tudo quanto é lado. Estou pensando nos meninos do Cordel do Fogo Encantado. Se eles dependessem da indústria cara, como era até os anos 70 e 80, não estavam tocando, eu não conheceria. Há questão tecnológica que favorece essa menor dependência do artista na música do grande mercado. Agora, o cinema é mais complicado, é uma indústria ainda cara.

MERCADO E PIRATARIA (CACÁ)

Não sou muito contra a pirataria, não. A pirataria no cinema não é questão policial, mas social. O cara quer consumir aquele produto e não tem poder aquisitivo. Então ele vai e compra pirata. Um amigo meu, o cineasta Sílvio Tendler, foi ao Vietnã fazer um documentário e voltou com um presente. Ele comprou um DVD pirata de "Tieta". Fiquei felicíssimo, imagina um vietnamita vendo "Tieta". A gente não pode botar polícia na rua para enfrentar isso, impedir que o mundo avance. Vejo um cenário possível para o cinema: com a digitalização, os filmes vão ser exibidos através de linha telefônica. Não tem cópia, certos gastos com mão-de-obra etc. Vai ser tão barato que pode ser que o filme passe a ser coisa de graça para vender o resto em volta. Para vender o comercial da sala de cinema, a camiseta, a pipoca mais cara do mundo, a Coca-Cola mais cara do mundo etc.

A INVENÇÃO DO INTELECTUAL (CACÁ)

O intelectual é basicamente uma invenção do final do século 19, que se torna uma coisa importante nas sociedades ocidentais a partir do século 20.
Ele sempre esteve misturado à política e nunca vai deixar de estar. É na segunda metade do século 20 que aparece, nas sociedades ocidentais, o intelectual orgânico, que é uma novidade e submete sua visão de mundo, sua visão do ofício que ele pratica ao programa político e doutrinário de determinado partido ou grupo político.
Quando isso aconteceu na ditadura brasileira, foi muito bem-vindo, porque, numa ditadura, todo mundo é contra. O perigoso é a democracia, porque aí cada um tem de pensar por si mesmo. Aí começaram a surgir as dúvidas sobre a relação entre cultura e política. De certo modo, o intelectual virou servidor público, a serviço de determinada causa, idéia ou partido.

CAETANO X ROBERTO SCHWARZ

Não consigo ver sentido nas escolhas do [crítico] Roberto Schwarz [em entrevista à Folha em 2007]: Chico Alvim, "Subúrbio" [de Chico Buarque] e "Cronicamente Inviável" [de Sérgio Bianchi]. Detesto "Cronicamente Inviável", acho o filme uma porcaria, um abacaxi de caroço. A música de Chico é bonita, mas não é uma canção que criticamente possa ser um exemplo [positivo]. Não sinto uma verdadeira realidade de curtição artística nessas escolhas do Schwarz.

QUALIDADE NÃO TEM JUIZ (GULLAR)

Não tem juiz para dizer [o que tem qualidade ou não], mas existe uma experiência acumulada que permite que o Caetano, o Gil, o Chico saibam o que é qualidade. Agora, existe gosto por uma outra música, que não tem a mesma qualidade, e que vende. Vai dizer que o Paulo Coelho não é escritor? É sim. É mais do que aquele cirurgião plástico [Ivo Pitanguy] que está na Academia Brasileira de Letras. [A idéia de que todo mundo é igual] nasceu com o marxismo. Mas as pessoas não são iguais. Elas são iguais em direitos, mas não em qualidade. As pessoas são diferentes e o mundo é mutirão. Porque o Oscar Niemeyer desenha o edifício dele, mas sem o pedreiro, vai ficar no papel.


Assista ao vídeo do debate de segunda-feira www.folha.com.br/083432


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