|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVRO/LANÇAMENTO
"É DIFÍCIL ENCONTRAR UM HOMEM BOM"
Contos de 55, da autora que retratou o sul dos EUA, recebem nova tradução
O'Connor oferece modelo de narrativa
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Recado aos neófitos na arte
da ficção: estudem Flannery
O'Connor. Os contos de "É Difícil
Encontrar um Homem Bom",
nova tradução de obra de 1955,
são um modelo de prosa límpida,
narração objetiva, diálogos precisos, clímax estupefaciente, elementos organicamente interconectados.
São lições que a autora desenvolveu a partir da influência do
"new criticism", movimento da
crítica americana que vigorou entre os anos de 1930 e 1950. O conto
"Um Golpe de Sorte" é, nesse sentido, uma proeza técnica: visualizamos toda a vida de uma mulher
enquanto ela sobe a escada para
seu apartamento.
Mas não é só pelo rigor artesanal que O'Connor costuma ser
lembrada. A escritora tinha predileção por temas de repercussão
moral. Em geral seus personagens, figuras estúpidas do Estado
sulino da Georgia, são capturados
pela força de acontecimentos
inesperados, violentos. Esses incidentes os fazem adivinhar a presença de um mistério maior, embora sejam incapazes, em sua ignorância, de penetrá-lo.
Tomemos o conto-título, no
qual uma velha, por conta de uma
série de palpites infelizes, põe a família cara a cara com uma quadrilha. Somente sob a mira da arma,
ela experimenta sua única experiência epifânica. "Ela teria sido
uma boa mulher", diz o bandido,
"se tivesse alguém pra dar um tiro
nela a cada minuto da vida dela".
Quase sempre é o personagem
moralmente desajustado que, por
meio de sua má ação, percebe a
dor imanente à condição humana, como intui o protagonista de
"Salve Sua Própria Vida": "O sr.
Shiflet sentiu que a podridão do
mundo estava prestes a engoli-lo". Essas situações são por vezes
exploradas de maneira cômica,
como em "A Gente Boa da Roça",
em que uma moça dotada de uma
perna mecânica é ludibriada por
um vendedor de Bíblias.
O viés satírico se encontra aliado a pormenores mórbidos, sórdidos. A forma como descreve
uma de suas personagens poderia
ilustrar sua ficção: "Tinha um interesse especial por detalhes a respeito de infecções misteriosas, deformidades, crueldade com crianças etc. No que tange a doenças,
preferia as que se estendiam por
longos períodos e as incuráveis".
A própria escritora sofria de lúpus
e morreu aos 39 anos, em decorrência da enfermidade, em 1964.
É nessa mistura de humor e
crueldade, de grotesco e sublime,
que empresta às suas narrativas
um tom de pateticismo trágico,
que reside a originalidade da escritora. Ainda que o subtexto
densamente católico possa arrefecer a força de algumas histórias,
O'Connor merece fazer parte, ao
lado de William Faulkner e Carson McCullers, da grande tríade
de ficcionistas que no século 20
desvendou o cenário anacrônico
do sul dos Estados Unidos.
É Difícil Encontrar um Homem Bom
Autor: Flannery O'Connor
Editora: Arx
Quanto: R$ 32 (288 págs.)
Texto Anterior: Rodapé: Produções hollywoodianas superam análises políticas e sociais Próximo Texto: Panorâmica - Música: Marisa Gata Mansa morre no Rio aos 69 Índice
|