São Paulo, sábado, 11 de janeiro de 2003

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LIVRO/LANÇAMENTO

"É DIFÍCIL ENCONTRAR UM HOMEM BOM"

Contos de 55, da autora que retratou o sul dos EUA, recebem nova tradução

O'Connor oferece modelo de narrativa

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Recado aos neófitos na arte da ficção: estudem Flannery O'Connor. Os contos de "É Difícil Encontrar um Homem Bom", nova tradução de obra de 1955, são um modelo de prosa límpida, narração objetiva, diálogos precisos, clímax estupefaciente, elementos organicamente interconectados.
São lições que a autora desenvolveu a partir da influência do "new criticism", movimento da crítica americana que vigorou entre os anos de 1930 e 1950. O conto "Um Golpe de Sorte" é, nesse sentido, uma proeza técnica: visualizamos toda a vida de uma mulher enquanto ela sobe a escada para seu apartamento.
Mas não é só pelo rigor artesanal que O'Connor costuma ser lembrada. A escritora tinha predileção por temas de repercussão moral. Em geral seus personagens, figuras estúpidas do Estado sulino da Georgia, são capturados pela força de acontecimentos inesperados, violentos. Esses incidentes os fazem adivinhar a presença de um mistério maior, embora sejam incapazes, em sua ignorância, de penetrá-lo.
Tomemos o conto-título, no qual uma velha, por conta de uma série de palpites infelizes, põe a família cara a cara com uma quadrilha. Somente sob a mira da arma, ela experimenta sua única experiência epifânica. "Ela teria sido uma boa mulher", diz o bandido, "se tivesse alguém pra dar um tiro nela a cada minuto da vida dela".
Quase sempre é o personagem moralmente desajustado que, por meio de sua má ação, percebe a dor imanente à condição humana, como intui o protagonista de "Salve Sua Própria Vida": "O sr. Shiflet sentiu que a podridão do mundo estava prestes a engoli-lo". Essas situações são por vezes exploradas de maneira cômica, como em "A Gente Boa da Roça", em que uma moça dotada de uma perna mecânica é ludibriada por um vendedor de Bíblias.
O viés satírico se encontra aliado a pormenores mórbidos, sórdidos. A forma como descreve uma de suas personagens poderia ilustrar sua ficção: "Tinha um interesse especial por detalhes a respeito de infecções misteriosas, deformidades, crueldade com crianças etc. No que tange a doenças, preferia as que se estendiam por longos períodos e as incuráveis". A própria escritora sofria de lúpus e morreu aos 39 anos, em decorrência da enfermidade, em 1964.
É nessa mistura de humor e crueldade, de grotesco e sublime, que empresta às suas narrativas um tom de pateticismo trágico, que reside a originalidade da escritora. Ainda que o subtexto densamente católico possa arrefecer a força de algumas histórias, O'Connor merece fazer parte, ao lado de William Faulkner e Carson McCullers, da grande tríade de ficcionistas que no século 20 desvendou o cenário anacrônico do sul dos Estados Unidos.


É Difícil Encontrar um Homem Bom
     Autor: Flannery O'Connor Editora: Arx Quanto: R$ 32 (288 págs.)



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