São Paulo, domingo, 11 de janeiro de 2009

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Mônica Bergamo

bergamo@folhasp.com.br

João Wainer/Folha Imagem
Médicos do hospital Albert Einstein treinam em bonecos de até R$ 500 mil que simulam respiração e batimentos cardíacos

Bonequinho de luxo

Bonecos que falam, atores que choram de verdade, cenas que imitam a vida real. Saiba como é o treinamento nos centros de simulação médica em dois hospitais de São Paulo

"Atividade elétrica sem pulso", diz a médica residente Patrícia Faria Scherer, 28, enquanto coloca a máscara de oxigênio no rosto da pessoa deitada na maca. "Prepara outra adrenalina", pede o cardiologista Jairo Neubauer, que há mais de cinco minutos tenta reanimar a paciente com a ajuda de drogas e massagem cardíaca ininterrupta. "Faz muito tempo que eu não faço isso", afirma ele, bufando de cansaço. Do outro lado da sala, o médico Roney Sampaio diz em tom de galhofa: "Coitada da dona Maria de Lourdes. Tá morrendo... Gostava muito dos pastéis de Belém dela".

 

O comentário serve de alerta à equipe, que logo consegue estabilizar o coração da "doente". Doente entre aspas, porque dona Maria de Lourdes não é de verdade. É um boneco robotizado, em tamanho natural, capaz de simular respiração e batimentos cardíacos, receber injeções, reconhecer a correta aplicação de medicamentos, responder a estímulos luminosos com a dilatação da pupila e ser entubado. E a emergência médica não passa de mais um exercício no Centro de Simulação Realística do hospital Albert Einstein. Realística mesmo, já que o boneco até fala. Ou melhor, quem fala é o médico que fica no microfone localizado na sala do computador: "Ai, ai, ai, doutor, tá doendo!".

 

"Poder treinar com bonecos é fundamental para organizar e uniformizar o atendimento numa situação crítica como essa. Assim, a chance de retorno do paciente aumenta", diz Sampaio, que divide seu tempo entre as aulas no curso de emergências cardiológicas e o verdadeiro pronto-socorro da instituição. Inaugurado há um ano e meio, o centro já treinou 6.500 médicos, enfermeiros e fisioterapeutas de diversos hospitais. "Esse é um espaço para que os médicos ganhem segurança e corrijam erros", diz a gerente do núcleo, Cristina Mizoi.

 

Considerados caros, centros de treinamento médico com simuladores e bonecos fisiológicos são uma realidade que só agora estão chegando às escolas. A Faculdade de Medicina da USP inaugurou seu laboratório de habilidades clínicas -com 35 tipos de manequins- em 2006, ao custo de R$ 1,7 milhão. O Einstein investiu cerca de R$ 4 milhões no seu e tem o boneco mais caro, de R$ 500 mil. Já o hospital Sírio-Libanês montou seu Instituto de Ensino e Pesquisa há três anos, com investimento de R$ 6 milhões.

 

Formada há um ano pela Universidade Federal da Bahia, a médica Fernanda Azevedo Jenuíno, 27, é um exemplo das dificuldades de formação existentes hoje na área médica. "Na faculdade, a gente aprende na teoria. Na prática, às vezes dá um bloqueio e não conseguimos fazer nada", diz ela, que no mês passado usou no curso do Sírio-Libanês um boneco para treinar os procedimentos de reanimação de pacientes. Uma realidade que já teve de enfrentar na prática no hospital da Unicamp -onde já teve de entubar pacientes e atender a crianças em choque.

 

Apesar de concordar que a ordem dos treinamentos -primeiro em seres humanos e só depois em bonecos- está errada, paira entre a classe médica um certo conformismo com a dificuldade de se inverter a situação. "Por mais que a gente faça cursos e simulações para organizar os procedimentos, nada é igual a estar com um doente de verdade. Você sabe que o boneco não está morrendo. Ele não chora, não grita de dor, não olha nos seus olhos. Isso gera um estresse diferente, que pode atrapalhar o atendimento se não está mecanizado", afirma a médica Lucilia Santana Faria, coordenadora do curso de emergências cardíacas pediátricas do Instituto de Ensino e Pesquisa do Sírio-Libanês.

 

Outras simulações bem mais simples, feitas com a ajuda de atores, também costumam auxiliar na formação de médicos e enfermeiros. A atriz Alessandra Oliveira faz parte do time, simulando dores, sintomas e até comportamentos comuns no dia-a-dia de um hospital. Em um dia de treinamentos, recebeu quatro vezes a notícia de que "seu marido não resistiu aos procedimentos e morreu". "Chorar é inevitável", diz ela, que acaba tendo de adaptar a encenação às diferentes abordagens dos médicos com quem contracena. "Uns são mais diretos; outros, mais sensíveis."

 

"O papel do ator é conduzir o cenário, já que o médico está sendo ele mesmo", explica Cristina Mizoi, do Einstein, que acompanha as simulações por trás dos vidros espelhados instalados em cada uma das 11 salas do complexo. Câmeras também fazem parte do arsenal e ajudam o médico a reavaliar sua conduta.

 

"Nunca diga que sente muito [quando vai comunicar uma morte]", orienta Wagner Valença, consultor de recursos humanos que acompanha a simulação de casos comportamentais no Einstein. "Você pode se solidarizar na dor ou lamentar a perda, mas não sentir pela pessoa", diz ao grupo de médicos. "Já passei por essa situação muitas vezes, mas aqui posso ver melhor como faço", afirma o médico Geraldo de Oliveira Jr., 38, que trabalha no hospital há cinco anos. Depois de encenar com uma atriz, o anestesista Marcos Mendonça, 38, faz uma autocrítica: "Deveria ter sido mais acolhedor na hora de comunicar o fato", diz ele, que, depois te tanto ensaiar, talvez consiga que as próximas cenas desse "Plantão Médico" da vida real saiam perfeitas já na primeira tomada.


Reportagem
JULIANA BIANCHI


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