São Paulo, domingo, 11 de janeiro de 2009

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Crítica/"O que Há, Tigresa?'/"Bananas"

DVDs retomam Allen pastelão

Comédias do início da carreira mostram diretor anárquico, que vai além da figura do baixinho desajeitado

HUGO POSSOLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Woody Allen, 73, costumava lembrar a famosa parábola de que a vida deveria ser ao contrário. Iniciaríamos velhos e, ganhando saúde, chegaríamos à juventude para, enfim, nossa morte ser consumada por um orgasmo. E se o mesmo acontecesse com sua obra cinematográfica? Se Allen partisse de "Vicky Cristina Barcelona" (2008) e terminasse em "O que Há, Tigresa?" (1966)?
Para quem não gosta de um humor mais grotesco, pode parecer um horror. Mas, para quem sabe que uma cena de pastelão pode nos dizer muito mais do que supõe nossa vã mediocridade, vale muito a pena.
A comédia "O que Há, Tigresa?", primeiro roteiro e direção de Woody Allen, parte do que poderia ser uma brincadeira adolescente: dublar um filme com bobagens. Na época, o já ousado comediante transforma o jogo, em que a palavra vence a imagem, numa potente metáfora sobre a indústria cinematográfica. Quem se arriscou a criticar Hollywood logo na primeira direção?
Joga água fervendo na visão americana da Guerra Fria. Escolhe um filme de espionagem japonês já risível em si para subverter a trama.
Um país inexistente precisa de uma receita de salada de ovos para ser reconhecido, os olhares do herói são transformados em taras sexuais e suas agressões verbais são absurdos xingamentos nacionalistas.
Subversão no sentido literal, a versão sub, que vem de baixo e atinge a bunda dos donos das verdades institucionalizadas.

Republiqueta de bananas
Um pouco depois, "Bananas", de 1971, é ainda mais farsesco. Após se apaixonar por Nancy (Lousie Lasser), o solitário Fielding Mellish (Allen) vai parar na típica republiqueta latino-americana de San Marcos.
De sequestrado pelos rebeldes acaba se tornando presidente.
(Ah, como eu gostaria de assistir ao lado do ilustre chefe de nosso país para acompanhar seus sábios comentários futebolísticos sobre presidentes que têm seu poder mensurado pelo que pesam em estrume!) É só um devaneio, como os tantos de Allen, que insere filmetes paralelos -que poderiam ser campeões no YouTube-, como o sonho do judeu crucificado disputando uma vaga de estacionamento e o comercial do cigarro Novo Testamento. Não estão ali à toa, completam as personagens e nos situam na época por meio da provocação. Woody Allen é anárquico, não se compromete com nenhum tipo de poder. Zomba dele com uma barba mais falsa que promessa de campanha eleitoral. Está nos dizendo que só acreditamos no que aceitamos acreditar.
Nessa fase paleolítica, Allen já aponta seu estilo, que vai além de sua figura caricata de baixinho desajeitado com óculos de aros grossos. Casais em diálogos frenéticos apontam o que virá depois, com noivos neuróticos e pessoas curiosas para saber tudo sobre sexo.
Divãs de analistas, pais e mães superprotetores não escapam de seu olhar oblíquo. Comediantes têm essa queda por inverter o olhar. Para ser expressivo, é necessário dar outra visão, como a do cego dirigindo um filme. É a necessária coragem da arte. Aos acomodados: que se iludam com "Big Brothers", "Dança dos Famosos" e outras formas pouco honestas de divertir os outros.
Sempre admirei Woody Allen por nunca ter ido à premiação do Oscar. E também o admirei muito por ter ido. Não foi para não ceder ao esquema corruptível e vaidoso, mas, depois, foi para fazer um gesto de afeto com Nova York. Topou ir à cerimônia do Oscar no ano seguinte ao 11 de Setembro. Poderia até ser ao contrário, ter ido a todas e faltado na última, mas não se é Woody Allen impunemente.


HUGO POSSOLO, 46, é palhaço, dramaturgo e diretor do grupo de teatro Parlapatões e do Circo Roda Brasil

Folha Online
Veja cena de "Bananas"
www.folha.com.br/083184


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