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Crítica/"O que Há, Tigresa?'/"Bananas"
DVDs retomam Allen pastelão
Comédias do início da carreira mostram diretor anárquico, que vai além da figura do baixinho desajeitado
HUGO POSSOLO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Woody Allen, 73, costumava lembrar a famosa parábola de
que a vida deveria ser ao contrário. Iniciaríamos velhos e,
ganhando saúde, chegaríamos
à juventude para, enfim, nossa
morte ser consumada por um
orgasmo. E se o mesmo acontecesse com sua obra cinematográfica? Se Allen partisse de
"Vicky Cristina Barcelona"
(2008) e terminasse em "O que
Há, Tigresa?" (1966)?
Para quem não gosta de um
humor mais grotesco, pode parecer um horror. Mas, para
quem sabe que uma cena de
pastelão pode nos dizer muito
mais do que supõe nossa vã mediocridade, vale muito a pena.
A comédia "O que Há, Tigresa?", primeiro roteiro e direção
de Woody Allen, parte do que
poderia ser uma brincadeira
adolescente: dublar um filme
com bobagens. Na época, o já
ousado comediante transforma
o jogo, em que a palavra vence a
imagem, numa potente metáfora sobre a indústria cinematográfica. Quem se arriscou a
criticar Hollywood logo na primeira direção?
Joga água fervendo na visão
americana da Guerra Fria. Escolhe um filme de espionagem
japonês já risível em si para
subverter a trama.
Um país inexistente precisa
de uma receita de salada de
ovos para ser reconhecido, os
olhares do herói são transformados em taras sexuais e suas
agressões verbais são absurdos
xingamentos nacionalistas.
Subversão no sentido literal,
a versão sub, que vem de baixo e
atinge a bunda dos donos das
verdades institucionalizadas.
Republiqueta de bananas
Um pouco depois, "Bananas", de 1971, é ainda mais farsesco. Após se apaixonar por
Nancy (Lousie Lasser), o solitário Fielding Mellish (Allen) vai
parar na típica republiqueta latino-americana de San Marcos.
De sequestrado pelos rebeldes
acaba se tornando presidente.
(Ah, como eu gostaria de assistir ao lado do ilustre chefe de
nosso país para acompanhar
seus sábios comentários futebolísticos sobre presidentes
que têm seu poder mensurado
pelo que pesam em estrume!)
É só um devaneio, como os
tantos de Allen, que insere filmetes paralelos -que poderiam ser campeões no YouTube-, como o sonho do judeu
crucificado disputando uma
vaga de estacionamento e o comercial do cigarro Novo Testamento. Não estão ali à toa, completam as personagens e nos situam na época por meio da provocação.
Woody Allen é anárquico,
não se compromete com nenhum tipo de poder. Zomba dele com uma barba mais falsa
que promessa de campanha
eleitoral. Está nos dizendo que
só acreditamos no que aceitamos acreditar.
Nessa fase paleolítica, Allen
já aponta seu estilo, que vai
além de sua figura caricata de
baixinho desajeitado com óculos de aros grossos. Casais em
diálogos frenéticos apontam o
que virá depois, com noivos
neuróticos e pessoas curiosas
para saber tudo sobre sexo.
Divãs de analistas, pais e
mães superprotetores não escapam de seu olhar oblíquo.
Comediantes têm essa queda
por inverter o olhar. Para ser
expressivo, é necessário dar outra visão, como a do cego dirigindo um filme.
É a necessária coragem da arte. Aos acomodados: que se iludam com "Big Brothers", "Dança dos Famosos" e outras formas pouco honestas de divertir
os outros.
Sempre admirei Woody
Allen por nunca ter ido à premiação do Oscar. E também o
admirei muito por ter ido. Não
foi para não ceder ao esquema
corruptível e vaidoso, mas, depois, foi para fazer um gesto de
afeto com Nova York. Topou ir
à cerimônia do Oscar no ano seguinte ao 11 de Setembro.
Poderia até ser ao contrário,
ter ido a todas e faltado na última, mas não se é Woody Allen
impunemente.
HUGO POSSOLO, 46, é palhaço, dramaturgo e
diretor do grupo de teatro Parlapatões e do Circo
Roda Brasil
Folha Online
Veja cena de "Bananas"
www.folha.com.br/083184
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