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NELSON ASCHER
Perguntar não ofende
Talvez não estejamos tão longe de uma sociedade de certezas indiscutíveis na qual o único crime seja simplesmente perguntar
APESAR de minha índole conciliadora e pacífica, às vezes, para minha surpresa, vejo-me
enredado em polêmicas. Há, por
exemplo, autores, sobretudo poetas,
incapazes de tolerar uma resenha
que não seja 100% elogiosa. Uma
restriçãozinha aqui ou mesmo uma
aprovação insuficientemente enfática ali e, pronto, eles se transformam, embaraçosamente, em exegetas entusiasmados de si mesmos.
É provável que, ao apontar a banalidade de tal ou qual verso, desta ou
daquela imagem, o crítico esteja,
sem querer, tocando em feridas profundas da alma do poeta ou invadindo os derradeiros redutos de sua auto-estima. Algo semelhante ocorreu
quando me envolvi na mais barulhenta de minhas discussões, se bem
que, naquela ocasião, os sentimentos que devo ter magoado tenham
sido os do público.
Há filmes que, de tão descaradamente manipuladores e demagógicos, tão mecânicos e transparentes
na sua má-fé, levam o espectador
atento a se sentir a um tempo vítima
e cúmplice de uma trapaça. Foi esse
o caso de "Sociedade dos Poetas
Mortos", a que assisti em 1990. Para
agravar meu mal-estar, tão logo os
créditos começaram a aparecer na
tela, boa parte da platéia aplaudiu de
pé aquela abominação. Soube logo
que essa reação se tornara demasiado freqüente e, quando meu comentário foi publicado, passei a receber
cartas que por pouco não me ameaçavam de morte. Como ninguém, ao
que parece, desejava que seu suspeito vínculo emocional com o filme
fosse questionado, descrever-lhe o
mecanismo soava para muitos como
ofensa pessoal.
Ofensa pessoal é a expressão-chave. Há temas em vias de se converterem em tabu, temas intocáveis, porque, quando entram em pauta, qualquer dúvida ou opinião
discordante são entendidas como
ataque às convicções sinceras e puras dos demais. Fazer ressalvas ao
partido que está no poder, por
exemplo, equivale a agredir fisicamente seus adeptos ou, no mínimo,
a colocar sob suspeita sua razão individual de ser. O mesmo vale seja
para o debate sobre as causas da criminalidade e suas possíveis soluções, seja para certas questões seletas de política internacional, seletas,
aliás, porque aqueles que se manifestam tão passionalmente a respeito delas seriam incapazes de discorrer, com um mínimo de coerência
ou informação, sobre inúmeras outras.
Resumindo, quando se trata de
abordar determinados tópicos, há
duas e apenas duas espécies de opinião: as corretas e as emitidas por
malfeitores. Vale dizer: uma opinião
que não se harmonize com a da
maioria nunca pode estar somente
errada; não há lugar para equívocos.
E a criminalidade da opinião em si é
o que menos importa, pois, afinal,
uma pessoa inocente poderia, por
engano, sustentá-la, não? Ocorre
que, no âmbito da passionalidade vigente, somente criminosos do pior
tipo é que fazem certas perguntas,
pensam determinadas coisas, têm
determinadas opiniões.
Mas por que tanta raiva em face
dessa discordância ou da mera dúvida? A maioria esmagadora não basta? É preciso ter a unanimidade? O
mantra dos enfurecidos assegura
que tanto os dissidentes como suas
opiniões são desconhecidos, irrelevantes, ridículos. Sua alergia, portanto, não pode decorrer do temor.
Não seria, a rigor, até conveniente
para eles ter alguns inimigos contra
os quais pudessem, de quando em
quando, exercitar suas armas, reafirmar suas certezas? E não é, ademais, paradoxal que essa gente, tão
compreensiva, tão disposta a perdoar crimes de sangue, revele-se tão
intolerante diante dos crimes de
pensamento?
Sucede que a virulência das reações ou a intensidade da ira dirigida
contra os poucos dissidentes tampouco mantêm qualquer relação de
proporção nem com influência destes, nem com o alcance do que dizem, ou melhor, questionam. Claro
que parte da cólera sagrada não passa de manifestação de ressentimento daqueles que, escravos das posições majoritárias em seus respectivos grupos, sentem-se humilhados
por pessoas que, de tão arrogantes,
julgam-se livres o bastante para dizer o que quiserem. Deduz-se daí
que o que neles incomoda é sua própria existência, uma vez que essa representa a hipótese segundo a qual
uma outra opinião é possível.
De acordo com a ordem normal
das coisas, as perguntas vêm primeiro, as respostas depois. Quando essa
ordem se inverte, a função das respostas passa a ser a de impedir perguntas de emergirem. Talvez não estejamos tão longe assim de uma sociedade de certezas indiscutíveis na
qual o pior, ou único, crime seja simplesmente perguntar.
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