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WALTER SALLES
Em "Buena Vista", a vida começa aos 90
Ou aos 92. É a idade do músico
Compay Segundo. "Tenho cinco
filhos e estou trabalhando assiduamente no sexto", confessa. Na
ausência de Viagra, Compay revela o segredo da longevidade caribenha: mulheres, flores, muito
romantismo e pescoço de galinha.
De preferência, frito.
Perto de Compay Segundo,
Ibrahim Ferrer é um menino.
Tem 70 e poucos anos, o olhar luminoso e um sorriso angelical nos
lábios. Já passou por maus momentos. Por 10 anos, deixou de ser
músico e sobreviveu como engraxate.
Mas continuei a dividir rum,
merengue e perfume com o santo,
e aí ele não me esqueceu. "Ele gosta de tudo que eu gosto", revela
matreiramente. Compay Segundo
e Ibrahim Ferrer são, junto com o
guitarrista Eliades Ochoa, o pianista Rubén González e outros
companheiros da velha guarda
cubana, parte de um milagre musical intitulado "Buena Vista Social Club".
"Buena Vista o quê?", perguntam os habitantes mais jovens de
Havana no documentário dirigido por Wim Wenders, que estréia
em São Paulo na semana que vem
e concorre ao Oscar no próximo
dia 26.
Esquecidos no seu próprio país,
os membros do mais inesperado
sucesso musical da ultima década
não se viam haviam anos. Até que
Ry Cooder, o amigo americano
que já nos ofereceu um encontro
antológico com o guitarrista africano Ali Farka Touré, desembarcou em Cuba em 1997.
Sem paternalismo, Cooder rendeu-se à excelência musical dos
velhinhos. Diferentemente dos
gringos que "descobrem" aquilo
que já existe, contentou-se em dar
voz. O resultado é uma explosão
de talento e integridade musical.
"Buena Vista Social Club", o
disco, virou um fenômeno. "Fogo,
fogo, estou em fogo, meus amigos", anunciavam Compay, Ferrer e companhia. E haja fôlego, e
haja pescoço de galinha: os velhinhos ainda dançavam incansavelmente em cena, contagiando o
publico em excursões cada vez
mais concorridas. Viraram ídolos
nos quatro cantos do mundo. Não
é pouco, numa cultura que valoriza cada vez mais a juventude e a
ausência de rugas.
Atrás do sucesso de "Buena Vista Social Club" há a capacidade
de reinvenção e de resistência de
todo um país. "Somos pequenos,
mas somos fortes", lembra Ferrer.
Para quem já viveu tanto, o renascimento é festejado com alguma serenidade. "Já pedi ao pessoal lá de cima para me conceder
um pouco mais de tempo para
aproveitar essa onda toda", confessa Ferrer.
"Ainda quero beber muito rum.
E fumar charutos", emenda Compay. Mas nem só os doces velhinhos renasceram com "Buena
Vista Social Club". Aos 55, Wenders reencontrou o público com
seu trabalho mais simples e generoso dos últimos 15 anos. Para se
ter uma idéia do impacto que
"Buena Vista" vem tendo nos Estados Unidos, por exemplo, basta
lembrar que o documentário já
foi visto por mais espectadores do
que o incensado "Tudo Sobre Minha Mãe", de Almodóvar.
Rodando em vídeo, com várias
tomadas feitas com câmera amadora, Wenders redescobriu o frescor e a espontaneidade dos seus
primeiros filmes. Com "Alice nas
Cidades" ou "Kings of the Road",
ele havia marcado toda uma geração de cinéfilos interessados nas
questões da identidade e da falta
de raízes.
Eram filmes imperfeitos, despretensiosos, que nos convidavam a
preencher os espaços deixados
propositalmente vazios. Depois,
Wenders fez uma adaptação soberba de Patricia Highsmith, "O
Amigo Americano", cujo resultado o levou a aceitar um convite de
Francis Coppola para dirigir o seu
primeiro filme nos Estados Unidos, "Hammett". Foi um desastre,
do qual Wenders só se recuperou
fazendo "O Estado das Coisas",
filme-catarse sobre uma equipe de
cinema imobilizada em Sintra,
Portugal, por falta de negativo.
Depois do sucesso comercial de
"Paris, Texas", que marca sua primeira colaboração com Ry Cooder e com o qual ganhou a Palma
de Ouro em Cannes, Wenders
mudou. Partiu para um cinema
que, ao contrário dos seus primeiros filmes, passou a acreditar mais
no verbo do que na imagem. Os
espaços vazios foram pouco a
pouco sendo preenchidos. O silêncio, eliminado.
Para aqueles que, como eu, gostavam imensamente do seu cinema, foi duro assistir a filmes cada
vez mais engessados. Pessoalmente, esperava que Wenders fosse
salvo por um novo "Estado das
Coisas". Foi o que aconteceu com
"Buena Vista Social Club".
O homem que encontro no encerramento do último festival de
Berlim está novamente de bem
com a vida. Enquanto a Alemanha inteira torce pelo Oscar que
ele talvez ganhe com "Buena Vista", Wenders olha para todo esse
burburinho à distância.
Não quer usurpar o sucesso dos
geniais velhinhos ou o mérito do
amigo Ry Cooder. Não foi receber
um só prêmio das diversas associações da crítica americana, embora tenha ganho quase todos. E
me confidencia que rodará seu
novo filme em digital, com a leveza de "Buena Vista".
Revejo o documentário antes de
escrever estas linhas. Além de todo o talento de Compay e cia.,
além da espontaneidade e do frescor reencontrados por Wenders,
há algo em "Buena Vista Social
Club" que comove.
Há a sensação de que Wenders
vê o presente como se já fosse passado. Está, de forma consciente ou
não, deixando uma memória de
um evento único, que não se repetirá. E que, graças ao cinema,
nunca mais será esquecido.
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