São Paulo, sábado, 11 de março de 2000


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WALTER SALLES
Em "Buena Vista", a vida começa aos 90

Ou aos 92. É a idade do músico Compay Segundo. "Tenho cinco filhos e estou trabalhando assiduamente no sexto", confessa. Na ausência de Viagra, Compay revela o segredo da longevidade caribenha: mulheres, flores, muito romantismo e pescoço de galinha. De preferência, frito.
Perto de Compay Segundo, Ibrahim Ferrer é um menino. Tem 70 e poucos anos, o olhar luminoso e um sorriso angelical nos lábios. Já passou por maus momentos. Por 10 anos, deixou de ser músico e sobreviveu como engraxate.
Mas continuei a dividir rum, merengue e perfume com o santo, e aí ele não me esqueceu. "Ele gosta de tudo que eu gosto", revela matreiramente. Compay Segundo e Ibrahim Ferrer são, junto com o guitarrista Eliades Ochoa, o pianista Rubén González e outros companheiros da velha guarda cubana, parte de um milagre musical intitulado "Buena Vista Social Club".
"Buena Vista o quê?", perguntam os habitantes mais jovens de Havana no documentário dirigido por Wim Wenders, que estréia em São Paulo na semana que vem e concorre ao Oscar no próximo dia 26.
Esquecidos no seu próprio país, os membros do mais inesperado sucesso musical da ultima década não se viam haviam anos. Até que Ry Cooder, o amigo americano que já nos ofereceu um encontro antológico com o guitarrista africano Ali Farka Touré, desembarcou em Cuba em 1997.
Sem paternalismo, Cooder rendeu-se à excelência musical dos velhinhos. Diferentemente dos gringos que "descobrem" aquilo que já existe, contentou-se em dar voz. O resultado é uma explosão de talento e integridade musical.
"Buena Vista Social Club", o disco, virou um fenômeno. "Fogo, fogo, estou em fogo, meus amigos", anunciavam Compay, Ferrer e companhia. E haja fôlego, e haja pescoço de galinha: os velhinhos ainda dançavam incansavelmente em cena, contagiando o publico em excursões cada vez mais concorridas. Viraram ídolos nos quatro cantos do mundo. Não é pouco, numa cultura que valoriza cada vez mais a juventude e a ausência de rugas.
Atrás do sucesso de "Buena Vista Social Club" há a capacidade de reinvenção e de resistência de todo um país. "Somos pequenos, mas somos fortes", lembra Ferrer. Para quem já viveu tanto, o renascimento é festejado com alguma serenidade. "Já pedi ao pessoal lá de cima para me conceder um pouco mais de tempo para aproveitar essa onda toda", confessa Ferrer.
"Ainda quero beber muito rum. E fumar charutos", emenda Compay. Mas nem só os doces velhinhos renasceram com "Buena Vista Social Club". Aos 55, Wenders reencontrou o público com seu trabalho mais simples e generoso dos últimos 15 anos. Para se ter uma idéia do impacto que "Buena Vista" vem tendo nos Estados Unidos, por exemplo, basta lembrar que o documentário já foi visto por mais espectadores do que o incensado "Tudo Sobre Minha Mãe", de Almodóvar.
Rodando em vídeo, com várias tomadas feitas com câmera amadora, Wenders redescobriu o frescor e a espontaneidade dos seus primeiros filmes. Com "Alice nas Cidades" ou "Kings of the Road", ele havia marcado toda uma geração de cinéfilos interessados nas questões da identidade e da falta de raízes.
Eram filmes imperfeitos, despretensiosos, que nos convidavam a preencher os espaços deixados propositalmente vazios. Depois, Wenders fez uma adaptação soberba de Patricia Highsmith, "O Amigo Americano", cujo resultado o levou a aceitar um convite de Francis Coppola para dirigir o seu primeiro filme nos Estados Unidos, "Hammett". Foi um desastre, do qual Wenders só se recuperou fazendo "O Estado das Coisas", filme-catarse sobre uma equipe de cinema imobilizada em Sintra, Portugal, por falta de negativo.
Depois do sucesso comercial de "Paris, Texas", que marca sua primeira colaboração com Ry Cooder e com o qual ganhou a Palma de Ouro em Cannes, Wenders mudou. Partiu para um cinema que, ao contrário dos seus primeiros filmes, passou a acreditar mais no verbo do que na imagem. Os espaços vazios foram pouco a pouco sendo preenchidos. O silêncio, eliminado.
Para aqueles que, como eu, gostavam imensamente do seu cinema, foi duro assistir a filmes cada vez mais engessados. Pessoalmente, esperava que Wenders fosse salvo por um novo "Estado das Coisas". Foi o que aconteceu com "Buena Vista Social Club".
O homem que encontro no encerramento do último festival de Berlim está novamente de bem com a vida. Enquanto a Alemanha inteira torce pelo Oscar que ele talvez ganhe com "Buena Vista", Wenders olha para todo esse burburinho à distância.
Não quer usurpar o sucesso dos geniais velhinhos ou o mérito do amigo Ry Cooder. Não foi receber um só prêmio das diversas associações da crítica americana, embora tenha ganho quase todos. E me confidencia que rodará seu novo filme em digital, com a leveza de "Buena Vista".
Revejo o documentário antes de escrever estas linhas. Além de todo o talento de Compay e cia., além da espontaneidade e do frescor reencontrados por Wenders, há algo em "Buena Vista Social Club" que comove.
Há a sensação de que Wenders vê o presente como se já fosse passado. Está, de forma consciente ou não, deixando uma memória de um evento único, que não se repetirá. E que, graças ao cinema, nunca mais será esquecido.


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