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"Bravo!" é revista de bordo com ensaístas de mau humor
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
A revista "Bravo!" chega a
seu sexto número, com artigos
muito bons sobre Salvador Dalí, Anselm Kiefer, de Chirico e
Fernando Botero, pintores que,
a partir deste mês, terão exposições no Rio ou em São Paulo.
A revista "Cult" dedica seu oitavo número ao escritor Michel Tournier e ao centenário
do poeta simbolista Cruz e
Sousa.
Como é possível? Há menos
de um ano, se me dissessem
que teríamos nas bancas duas
boas revistas culturais, coloridas, com boa distribuição e
aparentemente viáveis do ponto de vista econômico, eu reagiria com ceticismo. Mas a boa
notícia está aí: revistas não
apenas legíveis, mas "guardáveis", aparecem nas bancas e
se dedicam a uma divulgação
cultural de bom nível.
Na verdade, isso não seria de
estranhar. Acredito que a exposição de Rodin, há uns dois
anos, foi um marco. As filas
formadas na Pinacoteca estavam demonstrando que uma
cidade como São Paulo já entrava numa nova fase de consumo cultural. É a fase em que
mesmo a cultura de elite se
transforma em atração de
massas.
Depois de Rodin, tivemos
Monet e Camille Claudel; no
campo da música erudita,
grandes nomes como Kissin,
Pogorelich, a orquestra do Gewandhaus, sei lá mais o quê,
acabam aparecendo por aqui.
Vantagens da globalização e
da moeda "forte": importamos
carros japoneses e voltamos
aos bons tempos do café, quando as grandes estrelas da ópera
-Caruso, Gigli etc- passavam pelo Rio, por São Paulo e
Buenos Aires.
O fato é que o simples crescimento demográfico autoriza o
aparecimento de uma camada
de consumidores culturais
mais sofisticados, a que revistas como "Bravo!" e "Cult"
vêm atender.
Mas aí aparecem as contradições. A revista "Bravo!" explicita, de forma até meio ridícula, o dilema entre a alta cultura e o mercado. Tento explicar o que acontece.
"Bravo!" é uma revista grande, com cerca de 150 páginas,
impressa em papel brilhante,
cheia de fotos bonitas. Aborda
o "top de linha" em termos culturais, Léger, Woody Allen,
Clarice Lispector, Richard Serra, Arvo Paart. Mas todo esse
apuro, todo esse formato, toda
essa seleção, em que coisa ruim
não entra, confere a "Bravo!"
um ar de revista de bordo. É
como se fosse uma espécie de
"Ícaro", a publicação gratuita
da Varig, tanto do ponto de
vista gráfico, quanto do ponto
de vista editorial.
"Bravo!" tem por norma não
pichar ninguém. As excelentes
tabelas que publica -há quadros sinóticos de artes plásticas, de música, de literatura,
precedidos de uma tabela geral
da edição, intitulada "Bravograma"- oscilam apenas do
nível máximo ("não perca")
ao tímido e comportado "fique
de olho". Ou seja, não há nada
equivalente a "fuja", "desista",
nenhuma crítica dizendo: "é
porcaria". Tudo o que "Bravo!" seleciona é bom ou pelo
menos vale a pena.
Até aí, tudo bem. Estamos no
espírito de uma revista de bordo, que seleciona só o que há
de bom para se ver na cidade
em que seu avião vai pousar.
Mas o estranho é que, antes
de entrarmos na leitura de
bordo proposta, "Bravo!" apresenta uma seção denominada
"Ensaio". Seus colaboradores
habituais são Bruno Tolentino, Olavo de Carvalho, Sérgio
Augusto, Jorge Caldeira, Fernando de Barros e Silva e Sérgio Augusto de Andrade.
Aí é que a coisa complica.
Quase todos se colocam "contra o mercado". Há um espírito
de contestação, de polêmica,
de insulto no ar. A aeromoça é
solícita, serve salgadinhos,
promete uma culinária de primeira, mas o piloto, o co-piloto, o comissário de bordo estão
de mau humor e se entregam a
vagas acusações.
Neste último número de
"Bravo!", por exemplo, Olavo
de Carvalho se mostra descontente com a lista dos convidados brasileiros para o Salão do
Livro em Paris. Os franceses escolheram Paulo Coelho, Jorge
Amado, João Ubaldo, Frei Betto, Chico Buarque, entre outros. A lista não é respeitável
em sua integridade, concordo.
Mas Olavo de Carvalho propõe
uma outra, na qual se incluem
Meira Penna, Miguel Reale,
Amaral Vieira, Edino Krieger
e Wilson Martins.
Há algo de ridículo nessa intervenção. Não vejo como a lista de Olavo de Carvalho seria
mais eloquente do que a lista
feita pelos franceses. Há uma
razão, contudo: a lista dos
franceses foi feita muito mais
"pelo mercado" do que por critérios de "qualidade" -embora a qualidade de Amaral
Vieira e de Meira Penna ainda
esteja a ser provada.
É também contra "o mercado" que se insurge Bruno Tolentino, defendendo a poesia
de alguns ilustres desconhecidos como o poeta Jairo José
Xavier, de "A Idade do Urânio", ou Octavio Mora de "Ausência Viva". Não tenho nada
contra esses autores, que nunca li. Mas eis a linguagem de
Bruno Tolentino: para ele, um
poeta de verdade é "algo cuja
elusiva presença em tudo emula a presença da água vivificadora... ora, toda fonte é oculta,
subterrânea; seus arroios (...),
quando surgem à superfície, já
se gestaram nas profundezas,
seu fluir é sempre uma abrupta
surpresa."
Estamos diante do kitsch. E
esse kitsch, como todo kitsch
aliás, é ressentido: aponta para injustiças da "mídia" e do
"mercado". Sérgio Augusto
propõe a extinção dos cadernos culturais na imprensa diária. Elegem-se "safados" como
Gramsci, e heróis, como Roberto Schwarz, conforme o bestunto de cada um. Os ensaístas
de "Bravo!" se comportam como altos contestadores da
"cultura estabelecida" numa
publicação que expressa a pura cultura de mercado elitizada.
Tudo se torna uma conspiração embuçada, tudo é objeto
de contestação, numa revista
que representa o mais tranquilo "mainstream" cultural. Há
aqui um caso de esquizofrenia,
que se eu fosse articulista de
"Bravo!" já estaria relacionando com Quincas Borba ou Policarpo Quaresma.
Ou seja: teatraliza-se o inconformismo, o contracultural, a "oposição", num veículo
que nada tem de partidário, de
ideológico ou de opositor. Sua
reação ao mercado é mercadológica também. Faz-se uma
iconoclastia conservadora; defendendo os valores consagrados, Clarice, Guimarães, Euclides etc, finge-se uma descoberta da pólvora, a pólvora da
"verdadeira modernidade", da
"verdadeira contestação", da
"verdadeira literatura". Tudo
isso chove no molhado, por
uma razão bem simples.
É que a cultura brasileira vive de uma unanimidade enorme. Bandeira, Drummond,
Cabral, Guimarães Rosa são
incontestáveis. Não há polêmica possível. A polêmica se exerce marginalmente, numa espécie de indignação virtual.
Disso vivem os ensaístas de
"Bravo!", contestando o "mercado" que sustenta o sucesso
da revista. Tudo se torna nebuloso e impessoal, magoado e
denunciativo, oracular, integrado e marginal. Como hoje
em dia falta uma posição partidária e programática, política e sectária na cultura, faz-se
o sectarismo de um antimercado que é, em si mesmo, mercadológico e gratuito; é hipercrítico e não se toca; roda a baiana, mas roda em falso; é conservador contra a corrente, indignado tirando o chapéu. Digo tudo isso porque, em parte,
me reconheço nos ensaístas de
"Bravo!". Cabe fugir desse ridículo, em que todo crítico cultural cai frequentemente.
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