São Paulo, quarta, 11 de março de 1998

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"Bravo!" é revista de bordo com ensaístas de mau humor

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

A revista "Bravo!" chega a seu sexto número, com artigos muito bons sobre Salvador Dalí, Anselm Kiefer, de Chirico e Fernando Botero, pintores que, a partir deste mês, terão exposições no Rio ou em São Paulo. A revista "Cult" dedica seu oitavo número ao escritor Michel Tournier e ao centenário do poeta simbolista Cruz e Sousa.
Como é possível? Há menos de um ano, se me dissessem que teríamos nas bancas duas boas revistas culturais, coloridas, com boa distribuição e aparentemente viáveis do ponto de vista econômico, eu reagiria com ceticismo. Mas a boa notícia está aí: revistas não apenas legíveis, mas "guardáveis", aparecem nas bancas e se dedicam a uma divulgação cultural de bom nível.
Na verdade, isso não seria de estranhar. Acredito que a exposição de Rodin, há uns dois anos, foi um marco. As filas formadas na Pinacoteca estavam demonstrando que uma cidade como São Paulo já entrava numa nova fase de consumo cultural. É a fase em que mesmo a cultura de elite se transforma em atração de massas.
Depois de Rodin, tivemos Monet e Camille Claudel; no campo da música erudita, grandes nomes como Kissin, Pogorelich, a orquestra do Gewandhaus, sei lá mais o quê, acabam aparecendo por aqui.
Vantagens da globalização e da moeda "forte": importamos carros japoneses e voltamos aos bons tempos do café, quando as grandes estrelas da ópera -Caruso, Gigli etc- passavam pelo Rio, por São Paulo e Buenos Aires.
O fato é que o simples crescimento demográfico autoriza o aparecimento de uma camada de consumidores culturais mais sofisticados, a que revistas como "Bravo!" e "Cult" vêm atender.
Mas aí aparecem as contradições. A revista "Bravo!" explicita, de forma até meio ridícula, o dilema entre a alta cultura e o mercado. Tento explicar o que acontece.
"Bravo!" é uma revista grande, com cerca de 150 páginas, impressa em papel brilhante, cheia de fotos bonitas. Aborda o "top de linha" em termos culturais, Léger, Woody Allen, Clarice Lispector, Richard Serra, Arvo Paart. Mas todo esse apuro, todo esse formato, toda essa seleção, em que coisa ruim não entra, confere a "Bravo!" um ar de revista de bordo. É como se fosse uma espécie de "Ícaro", a publicação gratuita da Varig, tanto do ponto de vista gráfico, quanto do ponto de vista editorial.
"Bravo!" tem por norma não pichar ninguém. As excelentes tabelas que publica -há quadros sinóticos de artes plásticas, de música, de literatura, precedidos de uma tabela geral da edição, intitulada "Bravograma"- oscilam apenas do nível máximo ("não perca") ao tímido e comportado "fique de olho". Ou seja, não há nada equivalente a "fuja", "desista", nenhuma crítica dizendo: "é porcaria". Tudo o que "Bravo!" seleciona é bom ou pelo menos vale a pena.
Até aí, tudo bem. Estamos no espírito de uma revista de bordo, que seleciona só o que há de bom para se ver na cidade em que seu avião vai pousar.
Mas o estranho é que, antes de entrarmos na leitura de bordo proposta, "Bravo!" apresenta uma seção denominada "Ensaio". Seus colaboradores habituais são Bruno Tolentino, Olavo de Carvalho, Sérgio Augusto, Jorge Caldeira, Fernando de Barros e Silva e Sérgio Augusto de Andrade.
Aí é que a coisa complica. Quase todos se colocam "contra o mercado". Há um espírito de contestação, de polêmica, de insulto no ar. A aeromoça é solícita, serve salgadinhos, promete uma culinária de primeira, mas o piloto, o co-piloto, o comissário de bordo estão de mau humor e se entregam a vagas acusações.
Neste último número de "Bravo!", por exemplo, Olavo de Carvalho se mostra descontente com a lista dos convidados brasileiros para o Salão do Livro em Paris. Os franceses escolheram Paulo Coelho, Jorge Amado, João Ubaldo, Frei Betto, Chico Buarque, entre outros. A lista não é respeitável em sua integridade, concordo. Mas Olavo de Carvalho propõe uma outra, na qual se incluem Meira Penna, Miguel Reale, Amaral Vieira, Edino Krieger e Wilson Martins.
Há algo de ridículo nessa intervenção. Não vejo como a lista de Olavo de Carvalho seria mais eloquente do que a lista feita pelos franceses. Há uma razão, contudo: a lista dos franceses foi feita muito mais "pelo mercado" do que por critérios de "qualidade" -embora a qualidade de Amaral Vieira e de Meira Penna ainda esteja a ser provada.
É também contra "o mercado" que se insurge Bruno Tolentino, defendendo a poesia de alguns ilustres desconhecidos como o poeta Jairo José Xavier, de "A Idade do Urânio", ou Octavio Mora de "Ausência Viva". Não tenho nada contra esses autores, que nunca li. Mas eis a linguagem de Bruno Tolentino: para ele, um poeta de verdade é "algo cuja elusiva presença em tudo emula a presença da água vivificadora... ora, toda fonte é oculta, subterrânea; seus arroios (...), quando surgem à superfície, já se gestaram nas profundezas, seu fluir é sempre uma abrupta surpresa."
Estamos diante do kitsch. E esse kitsch, como todo kitsch aliás, é ressentido: aponta para injustiças da "mídia" e do "mercado". Sérgio Augusto propõe a extinção dos cadernos culturais na imprensa diária. Elegem-se "safados" como Gramsci, e heróis, como Roberto Schwarz, conforme o bestunto de cada um. Os ensaístas de "Bravo!" se comportam como altos contestadores da "cultura estabelecida" numa publicação que expressa a pura cultura de mercado elitizada.
Tudo se torna uma conspiração embuçada, tudo é objeto de contestação, numa revista que representa o mais tranquilo "mainstream" cultural. Há aqui um caso de esquizofrenia, que se eu fosse articulista de "Bravo!" já estaria relacionando com Quincas Borba ou Policarpo Quaresma.
Ou seja: teatraliza-se o inconformismo, o contracultural, a "oposição", num veículo que nada tem de partidário, de ideológico ou de opositor. Sua reação ao mercado é mercadológica também. Faz-se uma iconoclastia conservadora; defendendo os valores consagrados, Clarice, Guimarães, Euclides etc, finge-se uma descoberta da pólvora, a pólvora da "verdadeira modernidade", da "verdadeira contestação", da "verdadeira literatura". Tudo isso chove no molhado, por uma razão bem simples.
É que a cultura brasileira vive de uma unanimidade enorme. Bandeira, Drummond, Cabral, Guimarães Rosa são incontestáveis. Não há polêmica possível. A polêmica se exerce marginalmente, numa espécie de indignação virtual.
Disso vivem os ensaístas de "Bravo!", contestando o "mercado" que sustenta o sucesso da revista. Tudo se torna nebuloso e impessoal, magoado e denunciativo, oracular, integrado e marginal. Como hoje em dia falta uma posição partidária e programática, política e sectária na cultura, faz-se o sectarismo de um antimercado que é, em si mesmo, mercadológico e gratuito; é hipercrítico e não se toca; roda a baiana, mas roda em falso; é conservador contra a corrente, indignado tirando o chapéu. Digo tudo isso porque, em parte, me reconheço nos ensaístas de "Bravo!". Cabe fugir desse ridículo, em que todo crítico cultural cai frequentemente.



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