São Paulo, terça-feira, 11 de abril de 2006

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BERNARDO CARVALHO

Absurdistão

Há uma semana, entrei nos Estados Unidos pelo aeroporto de Chicago. Vinha lendo no avião uma história hilariante publicada na "The New Yorker" ("A Love Letter", de Gary Shteyngart), na qual o narrador, um russo obeso que quer voltar a qualquer preço para os Estados Unidos, por causa de uma mulher, faz o elogio dos funcionários do serviço de imigração dos aeroportos americanos: "Primeiro, gostaria de cair de joelhos diante do quartel-general do I.N.S. (Serviço de Imigração e Naturalização), em Washington, e agradecer à instituição pelo trabalho bem-sucedido em relação a todos os estrangeiros. Fui recebido pelos agentes do I.N.S. várias vezes ao desembarcar no aeroporto John F. Kennedy, e cada vez foi melhor que a anterior. Numa delas, um homem alegre, de turbante, carimbou meu passaporte depois de dizer alguma coisa incompreensível. Em outra ocasião, uma senhora negra e simpática, quase tão gorda quanto eu, deu uma olhada na minha barriga e sinalizou sua aprovação com os dois polegares pra cima. Que é que eu posso dizer? O pessoal do I.N.S. é justo e honrado. São os verdadeiros guardiães da América".
O mínimo que se pode dizer é que Shteyngart é um homem interessado na imigração e nos vistos. Nasceu em Leningrado em 1972 e se mudou para os Estados Unidos aos sete anos. Hoje, vive em Nova York. Seu primeiro romance, "The Russian Debutante's Handbook" (o manual da debutante russa) foi recebido com todos os louvores pela crítica inglesa e americana ao ser publicado em 2002. "Absurdistan" (Absurdistão), de onde vem o trecho citado, deve sair nos Estados Unidos no mês que vem. O narrador da história, disposto a tudo para conseguir entrar nos Estados Unidos e rever Rouenna Sales (que nesse meio-tempo saiu do inferno do South Bronx para se matricular no Hunter College, onde agora estuda para se tornar secretária), tenta comprar um passaporte belga num país chamado Absurdistão, onde não se pode dizer que o terreno seja propriamente infértil para o humor de Shteyngart.
Para entrar na suposta ex-república soviética, o narrador vai precisar de um visto, a ser tirado no próprio aeroporto. E de uma foto. Ao saber que o candidato ao visto, além de russo, é judeu, o fotógrafo absurdistano põe a mão no coração e diz: "Os judeus (...) são nossos irmãos (...). Enquanto você estiver em Absurdsvani (a capital do Absurdistão), minha mãe será a sua mãe". E arremata mais adiante: "Infelizmente, nossa mãe está no hospital com falência do fígado e uma cicatriz com quelóide na orelha esquerda. Seria possível...?". É só o começo da distribuição de notas de cem dólares.
Gary Shteyngart é um escritor impertinente numa América que pregou a globalização e a livre circulação dos bens de consumo ao resto do mundo, mas fecha suas fronteiras quando bem entende e se debate há semanas entre adotar ou não medidas draconianas contra os 11 milhões de imigrantes ilegais que vivem no país. Num texto publicado na revista "Granta", Shteyngart diz o seguinte: "Quando deixo a América, as pessoas tentam me matar. (...) Eu quero viver". E basta ler o trecho nostálgico em que o obeso russo sonha com uma cena idílica no South Bronx (enquanto enfia a cabeça entre os peitos de Rouenna, "belas crianças marrons correm em volta, tomadas pela felicidade do verão, gritando umas para as outras: "Quando eu sair, puta (em espanhol), prometo quebrar a porra da sua cara'") para entender a dimensão do sarcasmo.
Eu vinha rindo sozinho dos elogios do personagem obeso de Shteyngart aos agentes do controle de passaportes quando desembarquei em Chicago. Entrei na fila de estrangeiros e esperei a minha vez. A sorte me reservou um agente branco e magro, de óculos, com um anel dourado incrustado com uma pedra roxa.
O agente examinou o meu passaporte, o meu visto e os formulários de imigração. "Pesquisador convidado? Você faz pesquisa de quê?", perguntou. "Sou escritor." "E vai escrever o que em Berkeley?" "Escrevo romances, em português." E aí, para o meu espanto, o agente do serviço de imigração americano me saiu com o texto mais inverossímil do mundo: "Ah! Fiz um curso sobre Antero de Quental na Universidade de Wisconsin, em Madison". E, como se não bastasse, citou: ""Só males são reais, só dor existe". Também estudei literatura brasileira e antropofagia".
Alguma coisa estava muito errada. E eu nem estava tentando entrar no Absurdistão. Imagine um agente da polícia federal com o mesmo texto no aeroporto de Guarulhos. O mundo é feito de indivíduos e, para a sorte de todo mundo, as exceções existem -por mais absurdas que pareçam.
Na mesma noite, assisti na TV do hotel a uma reportagem sobre as patrulhas dos "minutemen" (termo cunhado à época da Guerra de Secessão para designar os homens que se prontificavam a lutar no minuto da convocação). Agora, as "minuteman patrols" são formadas por americanos, em geral brancos e obesos, como o narrador russo do texto de Shteyngart, que se refestelam em cadeiras diante das fronteiras, com uma cerveja na mão e uma arma na outra, à espera dos imigrantes ilegais. O sonho da globalização prometia o mesmo mundo para todos, em toda parte. Agora, o Absurdistão é aqui. Onde quer que você esteja.


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