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BERNARDO CARVALHO
Absurdistão
Há uma semana, entrei nos
Estados Unidos pelo aeroporto de Chicago. Vinha lendo no
avião uma história hilariante publicada na "The New Yorker" ("A
Love Letter", de Gary Shteyngart), na qual o narrador, um
russo obeso que quer voltar a
qualquer preço para os Estados
Unidos, por causa de uma mulher, faz o elogio dos funcionários
do serviço de imigração dos aeroportos americanos: "Primeiro,
gostaria de cair de joelhos diante
do quartel-general do I.N.S. (Serviço de Imigração e Naturalização), em Washington, e agradecer
à instituição pelo trabalho bem-sucedido em relação a todos os estrangeiros. Fui recebido pelos
agentes do I.N.S. várias vezes ao
desembarcar no aeroporto John
F. Kennedy, e cada vez foi melhor
que a anterior. Numa delas, um
homem alegre, de turbante, carimbou meu passaporte depois de
dizer alguma coisa incompreensível. Em outra ocasião, uma senhora negra e simpática, quase
tão gorda quanto eu, deu uma
olhada na minha barriga e sinalizou sua aprovação com os dois
polegares pra cima. Que é que eu
posso dizer? O pessoal do I.N.S. é
justo e honrado. São os verdadeiros guardiães da América".
O mínimo que se pode dizer é
que Shteyngart é um homem interessado na imigração e nos vistos.
Nasceu em Leningrado em 1972 e
se mudou para os Estados Unidos
aos sete anos. Hoje, vive em Nova
York. Seu primeiro romance,
"The Russian Debutante's Handbook" (o manual da debutante
russa) foi recebido com todos os
louvores pela crítica inglesa e
americana ao ser publicado em
2002. "Absurdistan" (Absurdistão), de onde vem o trecho citado,
deve sair nos Estados Unidos no
mês que vem. O narrador da história, disposto a tudo para conseguir entrar nos Estados Unidos e
rever Rouenna Sales (que nesse
meio-tempo saiu do inferno do
South Bronx para se matricular
no Hunter College, onde agora estuda para se tornar secretária),
tenta comprar um passaporte belga num país chamado Absurdistão, onde não se pode dizer que o
terreno seja propriamente infértil
para o humor de Shteyngart.
Para entrar na suposta ex-república soviética, o narrador vai
precisar de um visto, a ser tirado
no próprio aeroporto. E de uma
foto. Ao saber que o candidato ao
visto, além de russo, é judeu, o fotógrafo absurdistano põe a mão
no coração e diz: "Os judeus (...)
são nossos irmãos (...). Enquanto
você estiver em Absurdsvani (a
capital do Absurdistão), minha
mãe será a sua mãe". E arremata
mais adiante: "Infelizmente, nossa mãe está no hospital com falência do fígado e uma cicatriz
com quelóide na orelha esquerda.
Seria possível...?". É só o começo
da distribuição de notas de cem
dólares.
Gary Shteyngart é um escritor
impertinente numa América que
pregou a globalização e a livre
circulação dos bens de consumo
ao resto do mundo, mas fecha
suas fronteiras quando bem entende e se debate há semanas entre adotar ou não medidas draconianas contra os 11 milhões de
imigrantes ilegais que vivem no
país. Num texto publicado na revista "Granta", Shteyngart diz o
seguinte: "Quando deixo a América, as pessoas tentam me matar.
(...) Eu quero viver". E basta ler o
trecho nostálgico em que o obeso
russo sonha com uma cena idílica
no South Bronx (enquanto enfia
a cabeça entre os peitos de Rouenna, "belas crianças marrons correm em volta, tomadas pela felicidade do verão, gritando umas para as outras: "Quando eu sair, puta (em espanhol), prometo quebrar a porra da sua cara'") para
entender a dimensão do sarcasmo.
Eu vinha rindo sozinho dos elogios do personagem obeso de
Shteyngart aos agentes do controle de passaportes quando desembarquei em Chicago. Entrei na fila de estrangeiros e esperei a minha vez. A sorte me reservou um
agente branco e magro, de óculos,
com um anel dourado incrustado
com uma pedra roxa.
O agente examinou o meu passaporte, o meu visto e os formulários de imigração. "Pesquisador
convidado? Você faz pesquisa de
quê?", perguntou. "Sou escritor."
"E vai escrever o que em Berkeley?" "Escrevo romances, em português." E aí, para o meu espanto,
o agente do serviço de imigração
americano me saiu com o texto
mais inverossímil do mundo:
"Ah! Fiz um curso sobre Antero
de Quental na Universidade de
Wisconsin, em Madison". E, como se não bastasse, citou: ""Só
males são reais, só dor existe".
Também estudei literatura brasileira e antropofagia".
Alguma coisa estava muito errada. E eu nem estava tentando
entrar no Absurdistão. Imagine
um agente da polícia federal com
o mesmo texto no aeroporto de
Guarulhos. O mundo é feito de indivíduos e, para a sorte de todo
mundo, as exceções existem
-por mais absurdas que pareçam.
Na mesma noite, assisti na TV
do hotel a uma reportagem sobre
as patrulhas dos "minutemen"
(termo cunhado à época da Guerra de Secessão para designar os
homens que se prontificavam a
lutar no minuto da convocação).
Agora, as "minuteman patrols"
são formadas por americanos, em
geral brancos e obesos, como o
narrador russo do texto de
Shteyngart, que se refestelam em
cadeiras diante das fronteiras,
com uma cerveja na mão e uma
arma na outra, à espera dos imigrantes ilegais. O sonho da globalização prometia o mesmo mundo para todos, em toda parte.
Agora, o Absurdistão é aqui. Onde quer que você esteja.
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