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JOÃO PEREIRA COUTINHO
A coragem do chocolate
Acreditar hoje que uma representação heterodoxa de Cristo é um ato "original" pressupõe um irracionalismo
PASSEI A minha Páscoa a pensar
em chocolate. Não falo em
ovos de chocolate, o único
símbolo realmente sacro que ocupa
a imaginação popular durante a quadra. Falo em Jesus Cristo "lui même", nu e em plena crucificação,
transformado em gigantesca escultura de chocolate pelo artista Cosimo Cavallaro em Nova York. A idéia,
creio, era exibir a obra em galeria da
cidade. A cidade não gostou da proposta, organizações católicas marcharam contra e a galeria suspendeu
a exibição. E o diretor da galeria bateu com a porta em gesto melodramático, alegando que a obra de arte
era meditação "corajosa" e "original" sobre o tema da Paixão.
Eu não pretendo incomodar a sabedoria dos críticos. E, pessoalmente falando, é indiferente para mim
um Cristo em madeira, latão ou chocolate, embora o chocolate seja mais
comestível. Em momentos assim, é
preciso lembrar P.T. Barnum e sua
frase de que nasce um otário a cada
minuto. Acreditar, no início do século 21, que uma representação heterodoxa de Cristo é um ato "corajoso"
e "original" pressupõe um irracionalismo digno de qualquer fanático.
Em 1850, talvez fosse verdade.
Aconteceu com John Everett Millais (1829-1896), o membro mais
novo da chamada Irmandade Pré-Rafaelita, que apresentou na Royal
Academy de Londres o seu "Cristo
em Casa de Seus Pais". Gosto de observar o quadro, procurando nele as
causas do escândalo. Não as encontro. Na obra de Millais, Jesus surge
no centro da oficina de seu pai, depois de um pequeno acidente manual durante o trabalho de carpintaria (uma espécie de Lula "avant la
lettre"). Maria observa tudo. José
também. E o cordeiro, à entrada da
casa, confere à composição uma dignidade piedosa que deveria fazer as
delícias das almas religiosas.
Não fez. Em 1850, o quadro era
"obsceno e repulsivo", nas palavras
de Charles Dickens, um moralista
vulgar com esmagador talento literário (concedo). Por que "obsceno" e
"repulsivo"? Porque Jesus, o Messias, era apresentado sem nenhuma
dignidade bíblica, em ambiente oficinal. No fundo, humanizado como
se fosse apenas um pobre carpinteiro na pobre Galiléia romana.
Passaram 150 anos. E, 150 anos
depois, a única coisa que espanta na
obra polêmica de Millais é a sua ingenuidade temática e pictórica. Sobretudo quando a figura de Cristo,
em filmes ou livros, em pinturas ou
esculturas, foi dessacralizada de todas as formas e feitios pela cultura
pop pós-1850. A "blasfêmia" transformou-se numa forma ortodoxa e
preguiçosa de expressão artística.
Hoje, Jesus Cristo em chocolate
não é "corajoso" ou "original". É o
contrário disso, porque o artista sabe que o gesto pode despertar alguns
protestos religiosos; mas não desperta, como despertaram as charges
de Maomé, a vontade dos fundamentalista em matá-lo.
Aliás, falei em Maomé e falei bem:
se a arte serve para sacudir consciências e provocar os tabus majoritários, "corajoso" e "original" seria
apresentar o profeta muçulmano
em iguais preparos, de preferência
durante o Ramadã. Eu pagava para
ver, embora ter cadáveres a boiar na
consciência não seja a minha praia.
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