São Paulo, quarta-feira, 11 de abril de 2007

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

A coragem do chocolate

Acreditar hoje que uma representação heterodoxa de Cristo é um ato "original" pressupõe um irracionalismo

PASSEI A minha Páscoa a pensar em chocolate. Não falo em ovos de chocolate, o único símbolo realmente sacro que ocupa a imaginação popular durante a quadra. Falo em Jesus Cristo "lui même", nu e em plena crucificação, transformado em gigantesca escultura de chocolate pelo artista Cosimo Cavallaro em Nova York. A idéia, creio, era exibir a obra em galeria da cidade. A cidade não gostou da proposta, organizações católicas marcharam contra e a galeria suspendeu a exibição. E o diretor da galeria bateu com a porta em gesto melodramático, alegando que a obra de arte era meditação "corajosa" e "original" sobre o tema da Paixão.
Eu não pretendo incomodar a sabedoria dos críticos. E, pessoalmente falando, é indiferente para mim um Cristo em madeira, latão ou chocolate, embora o chocolate seja mais comestível. Em momentos assim, é preciso lembrar P.T. Barnum e sua frase de que nasce um otário a cada minuto. Acreditar, no início do século 21, que uma representação heterodoxa de Cristo é um ato "corajoso" e "original" pressupõe um irracionalismo digno de qualquer fanático.
Em 1850, talvez fosse verdade. Aconteceu com John Everett Millais (1829-1896), o membro mais novo da chamada Irmandade Pré-Rafaelita, que apresentou na Royal Academy de Londres o seu "Cristo em Casa de Seus Pais". Gosto de observar o quadro, procurando nele as causas do escândalo. Não as encontro. Na obra de Millais, Jesus surge no centro da oficina de seu pai, depois de um pequeno acidente manual durante o trabalho de carpintaria (uma espécie de Lula "avant la lettre"). Maria observa tudo. José também. E o cordeiro, à entrada da casa, confere à composição uma dignidade piedosa que deveria fazer as delícias das almas religiosas.
Não fez. Em 1850, o quadro era "obsceno e repulsivo", nas palavras de Charles Dickens, um moralista vulgar com esmagador talento literário (concedo). Por que "obsceno" e "repulsivo"? Porque Jesus, o Messias, era apresentado sem nenhuma dignidade bíblica, em ambiente oficinal. No fundo, humanizado como se fosse apenas um pobre carpinteiro na pobre Galiléia romana.
Passaram 150 anos. E, 150 anos depois, a única coisa que espanta na obra polêmica de Millais é a sua ingenuidade temática e pictórica. Sobretudo quando a figura de Cristo, em filmes ou livros, em pinturas ou esculturas, foi dessacralizada de todas as formas e feitios pela cultura pop pós-1850. A "blasfêmia" transformou-se numa forma ortodoxa e preguiçosa de expressão artística.
Hoje, Jesus Cristo em chocolate não é "corajoso" ou "original". É o contrário disso, porque o artista sabe que o gesto pode despertar alguns protestos religiosos; mas não desperta, como despertaram as charges de Maomé, a vontade dos fundamentalista em matá-lo.
Aliás, falei em Maomé e falei bem: se a arte serve para sacudir consciências e provocar os tabus majoritários, "corajoso" e "original" seria apresentar o profeta muçulmano em iguais preparos, de preferência durante o Ramadã. Eu pagava para ver, embora ter cadáveres a boiar na consciência não seja a minha praia.


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