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Cinema/estréias - Crítica/"Um Beijo Roubado"
Viagem de Kar-wai pela América confirma a sua marca autoral
"Um Beijo Roubado" é o primeiro filme rodado nos EUA pelo diretor chinês e é estrelado pela cantora Norah Jones
CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
A cinefilia, como bem sabem os praticantes dessa estranha forma de
culto, é em grande parte um
exercício de devoção amorosa,
tanto mais satisfeita quanto
mais se reconhecem os traços
essenciais de seu objeto. Um diretor ou uma obra se tornam
adorados na medida em que
não traem seus seguidores,
mantendo constantes um ou
mais traços característicos de
seus temas e estilos.
É nesse sentido que o chinês
Wong Kar-wai ganhou a afeição cinéfila, desde que seus trabalhos se difundiram no Ocidente a partir de 1995, com
"Amores Expressos". Treze
anos, cinco longas e um punhado de premiações importantes
depois, Wong aporta na pátria
mítica do cinema, a América,
com "Um Beijo Roubado", um
filme que vem sendo recebido
com reservas e no qual se aponta o defeito de repetição de tiques, sinal de um suposto esgotamento do cinema do diretor.
Ora, se este é um critério suficiente, a obra da maioria dos
diretores reconhecidos como
autores teria perdido sua intensidade no longo prazo, de
Hitchcock a Jia Zhang-ke, passando por Fellini, Antonioni,
Truffaut, Cronenberg e outros.
Em todos, a assinatura se
sustenta na recorrência de temas, no uso expressivo de movimentos de câmera e nas escolhas de modo de encenar, conteúdos e formas que configuram um estilo.
Amplidão continental
"Um Beijo Roubado" tem, ao
contrário do que vem sendo
apontado, a vantagem de deslocar Kar-wai de seu habitat, as
ruas estreitas e os cenários
claustrofóbicos de Hong Kong,
e lançá-lo na amplidão continental dos EUA. Isso garante ao
filme uma oxigenação material,
a despeito da recorrência dos
efeitos narrativos habituais do
seu cinema: as elipses que suprimem o óbvio dramático e introduzem surpresas e a ênfase
na temporalidade das imagens,
quando submetidas a acelerações e desacelerações.
A mudança de cenário não se
dá isenta de riscos, como já
aconteceu com Wim Wenders,
cujo cinema não se recuperou
completamente do fetichismo
de cartão-postal depois que se
lançou na aventura norte-americana. No caso de Kar-wai, a
experiência é salutar, pois liberta-o de um sufocamento do
universo pessoal que parecia
atingir o limite em "2046".
Para o papel central, Kar-wai
escolheu a cantora Norah Jones, que oferece um desempenho equilibrado, em contraste
quando exposto aos excessos
interpretativos de alguns de
seus pares. Há ainda a aparição
mágica da pop indie Cat Power,
também na canção "The Greatest", que ilumina os momentos altos do filme.
"Um Beijo Roubado" entrega
ao público fiel do cineasta um
Kar-wai da mais pura estirpe.
A marca é a de sempre, uma
história de amor rompido que
lança a protagonista num périplo pela vastidão americana,
onde encontra uma sucessão
de protagonistas de outros tantos desamores.
Nesta experiência, a personagem sai de seu casulo sentimental, liberta-se do ressentimento e se permite a promessa
de uma nova história, em vez de
se boicotar mergulhando no
beco sem saída da nostalgia, como fazia o escritor doente de
romantismo de "2046". Seu papel equivale ao do jovem chinês
viajante de "Felizes Juntos",
que lançava uma pá de cal definitiva no relacionamento esgotado dos dois amantes gays exilados em Buenos Aires.
Só que desta vez o fracasso
amoroso é introjetado, absorvido e superado pela própria protagonista, que projeta seu movimento ao testemunhar a falência do romantismo naqueles
que a rodeiam.
Em outros tempos, Kar-wai
definiu "o amor como uma
doença cujos efeitos destrutivos se mantêm a longo prazo".
Desta vez, ele parece nos dizer
que alguns doentes têm a chance de recuperar a saúde.
UM BEIJO ROUBADO
Produção: França/China/Hong Kong, 2007
Direção: Wong Kar-wai
Com: Norah Jones, Natalie Portman
Onde: a partir de hoje no Bristol, Reserva Cultural e circuito
Avaliação: ótimo
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