São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 2008

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Cinema/estréias - Crítica/"Um Beijo Roubado"

Viagem de Kar-wai pela América confirma a sua marca autoral

"Um Beijo Roubado" é o primeiro filme rodado nos EUA pelo diretor chinês e é estrelado pela cantora Norah Jones

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

A cinefilia, como bem sabem os praticantes dessa estranha forma de culto, é em grande parte um exercício de devoção amorosa, tanto mais satisfeita quanto mais se reconhecem os traços essenciais de seu objeto. Um diretor ou uma obra se tornam adorados na medida em que não traem seus seguidores, mantendo constantes um ou mais traços característicos de seus temas e estilos.
É nesse sentido que o chinês Wong Kar-wai ganhou a afeição cinéfila, desde que seus trabalhos se difundiram no Ocidente a partir de 1995, com "Amores Expressos". Treze anos, cinco longas e um punhado de premiações importantes depois, Wong aporta na pátria mítica do cinema, a América, com "Um Beijo Roubado", um filme que vem sendo recebido com reservas e no qual se aponta o defeito de repetição de tiques, sinal de um suposto esgotamento do cinema do diretor.
Ora, se este é um critério suficiente, a obra da maioria dos diretores reconhecidos como autores teria perdido sua intensidade no longo prazo, de Hitchcock a Jia Zhang-ke, passando por Fellini, Antonioni, Truffaut, Cronenberg e outros.
Em todos, a assinatura se sustenta na recorrência de temas, no uso expressivo de movimentos de câmera e nas escolhas de modo de encenar, conteúdos e formas que configuram um estilo.

Amplidão continental
"Um Beijo Roubado" tem, ao contrário do que vem sendo apontado, a vantagem de deslocar Kar-wai de seu habitat, as ruas estreitas e os cenários claustrofóbicos de Hong Kong, e lançá-lo na amplidão continental dos EUA. Isso garante ao filme uma oxigenação material, a despeito da recorrência dos efeitos narrativos habituais do seu cinema: as elipses que suprimem o óbvio dramático e introduzem surpresas e a ênfase na temporalidade das imagens, quando submetidas a acelerações e desacelerações.
A mudança de cenário não se dá isenta de riscos, como já aconteceu com Wim Wenders, cujo cinema não se recuperou completamente do fetichismo de cartão-postal depois que se lançou na aventura norte-americana. No caso de Kar-wai, a experiência é salutar, pois liberta-o de um sufocamento do universo pessoal que parecia atingir o limite em "2046".
Para o papel central, Kar-wai escolheu a cantora Norah Jones, que oferece um desempenho equilibrado, em contraste quando exposto aos excessos interpretativos de alguns de seus pares. Há ainda a aparição mágica da pop indie Cat Power, também na canção "The Greatest", que ilumina os momentos altos do filme.
"Um Beijo Roubado" entrega ao público fiel do cineasta um Kar-wai da mais pura estirpe.
A marca é a de sempre, uma história de amor rompido que lança a protagonista num périplo pela vastidão americana, onde encontra uma sucessão de protagonistas de outros tantos desamores.
Nesta experiência, a personagem sai de seu casulo sentimental, liberta-se do ressentimento e se permite a promessa de uma nova história, em vez de se boicotar mergulhando no beco sem saída da nostalgia, como fazia o escritor doente de romantismo de "2046". Seu papel equivale ao do jovem chinês viajante de "Felizes Juntos", que lançava uma pá de cal definitiva no relacionamento esgotado dos dois amantes gays exilados em Buenos Aires.
Só que desta vez o fracasso amoroso é introjetado, absorvido e superado pela própria protagonista, que projeta seu movimento ao testemunhar a falência do romantismo naqueles que a rodeiam.
Em outros tempos, Kar-wai definiu "o amor como uma doença cujos efeitos destrutivos se mantêm a longo prazo".
Desta vez, ele parece nos dizer que alguns doentes têm a chance de recuperar a saúde.


UM BEIJO ROUBADO
Produção:
França/China/Hong Kong, 2007
Direção: Wong Kar-wai
Com: Norah Jones, Natalie Portman
Onde: a partir de hoje no Bristol, Reserva Cultural e circuito
Avaliação: ótimo


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