|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/"Questões de Honra"
Em obra sutil, Begley retrata desajustes na elite dos EUA
Narrativa descreve a trajetória de três alunos de Harvard do início dos anos 50
MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Tomado isoladamente, o
título do novo romance
de Louis Begley, autor
de "Sobre Schmidt" e "Naufrágio", pode evocar um tipo de
história antiquada sobre princípios e escolhas morais.
E de fato poderíamos considerar o livro nesse sentido antiquado, salvo por uma dificuldade. A amplitude do tema aliada
à opacidade do romance impede o leitor de saber prontamente de que questões afinal ali se
tratam; e será preciso chegar
quase ao fim da leitura para que
uma ideia mais precisa sobre a
matéria possa formar-se.
Isso quer dizer, em suma, que
não fica claro com o que estamos lidando -e que a falta de
clareza se deve à estrutura do
próprio romance. "Questões de
Honra" descreve a trajetória de
três alunos de Harvard desde o
início dos anos 50 até mais ou
menos a época atual: o narrador Sam Standish e seus colegas de apartamento Archie Palmer III e Henry White.
Em comum entre eles está o
fato de que os três, de um modo
ou de outro, não se ajustam aos
padrões da elite americana.
A
riqueza da família de Archie,
por exemplo, não é antiga, apesar do numeral romano em seu
sobrenome. Já Sam é filho adotado de um ramo um pouco torto de uma cepa mais tradicional. E Henry é judeu, tendo
chegado da Polônia (onde viveu
escondido, com os pais) após o
fim da Segunda Guerra.
Natureza ambígua
Sam queixa-se do jeito fechado de Archie, mas ele mesmo é
um enigma. Sabemos que foi
adotado, mas não por quê, e
paira sobre o processo um possível escândalo familiar. Durante anos faz análise sem que
entendamos o que se discute ali
nem as razões profundas de
seus traumas. E ele com toda
probabilidade é gay, embora as
indicações sobre sua homossexualidade sejam quase imperceptíveis.
Curiosamente, a judeidade
(conhecida, mas escamoteada)
de Henry aproxima-se da condição homossexual (velada) de
Sam, como coisas que não devem ser ditas de forma aberta.
"Não posso procurar pessoas
iguais a mim porque não sei
quem são. Talvez elas não existam. Não tenho certeza de que
sou como alguma outra pessoa.
E não vou fingir que sou", diz
Henry, sobre sua natureza ambígua, embora o comentário
sirva também para Sam.
Sam torna-se um romancista
de renome, e Henry, um advogado bem-sucedido, representando uma das maiores firmas
americanas junto a banqueiros
da nobreza europeia. A metamorfose deste último e sua
estratégia de conversão
ocupam o centro do romance.
Sua estratégia: tornar-se outro.
Ser como Archie e Sam -delegados (está certo, falhados) da
horripilante classe dirigente
americana.
Tudo é sutil, alusivo, como a
homossexualidade de Sam ou o
caráter horripilante dessa elite.
Esta abole o outro ou o obriga a
submeter-se a uma metamorfose alienante. Nesse ambiente
farsesco, em que a opacidade é
a regra e a forma, o "eu" escapa
à vista. E se o sujeito se evade,
também fica difícil discernir as
questões de honra que lhe dizem respeito. A não ser quando
se descobre que a evasão constitui por fim a própria desonra.
MARCELO PEN é professor de teoria literária na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
QUESTÕES DE HONRA
Autor: Louis Begley
Tradução: Sergio Tellaroli
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 56 (424 págs.)
Avaliação: bom
Texto Anterior: Trecho Próximo Texto: Vitrine Índice
|