São Paulo, sábado, 11 de abril de 2009

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Crítica/"Questões de Honra"

Em obra sutil, Begley retrata desajustes na elite dos EUA

Narrativa descreve a trajetória de três alunos de Harvard do início dos anos 50

MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Tomado isoladamente, o título do novo romance de Louis Begley, autor de "Sobre Schmidt" e "Naufrágio", pode evocar um tipo de história antiquada sobre princípios e escolhas morais. E de fato poderíamos considerar o livro nesse sentido antiquado, salvo por uma dificuldade. A amplitude do tema aliada à opacidade do romance impede o leitor de saber prontamente de que questões afinal ali se tratam; e será preciso chegar quase ao fim da leitura para que uma ideia mais precisa sobre a matéria possa formar-se.
Isso quer dizer, em suma, que não fica claro com o que estamos lidando -e que a falta de clareza se deve à estrutura do próprio romance. "Questões de Honra" descreve a trajetória de três alunos de Harvard desde o início dos anos 50 até mais ou menos a época atual: o narrador Sam Standish e seus colegas de apartamento Archie Palmer III e Henry White. Em comum entre eles está o fato de que os três, de um modo ou de outro, não se ajustam aos padrões da elite americana.
A riqueza da família de Archie, por exemplo, não é antiga, apesar do numeral romano em seu sobrenome. Já Sam é filho adotado de um ramo um pouco torto de uma cepa mais tradicional. E Henry é judeu, tendo chegado da Polônia (onde viveu escondido, com os pais) após o fim da Segunda Guerra.

Natureza ambígua
Sam queixa-se do jeito fechado de Archie, mas ele mesmo é um enigma. Sabemos que foi adotado, mas não por quê, e paira sobre o processo um possível escândalo familiar. Durante anos faz análise sem que entendamos o que se discute ali nem as razões profundas de seus traumas. E ele com toda probabilidade é gay, embora as indicações sobre sua homossexualidade sejam quase imperceptíveis.
Curiosamente, a judeidade (conhecida, mas escamoteada) de Henry aproxima-se da condição homossexual (velada) de Sam, como coisas que não devem ser ditas de forma aberta. "Não posso procurar pessoas iguais a mim porque não sei quem são. Talvez elas não existam. Não tenho certeza de que sou como alguma outra pessoa. E não vou fingir que sou", diz Henry, sobre sua natureza ambígua, embora o comentário sirva também para Sam.
Sam torna-se um romancista de renome, e Henry, um advogado bem-sucedido, representando uma das maiores firmas americanas junto a banqueiros da nobreza europeia. A metamorfose deste último e sua estratégia de conversão ocupam o centro do romance. Sua estratégia: tornar-se outro. Ser como Archie e Sam -delegados (está certo, falhados) da horripilante classe dirigente americana.
Tudo é sutil, alusivo, como a homossexualidade de Sam ou o caráter horripilante dessa elite. Esta abole o outro ou o obriga a submeter-se a uma metamorfose alienante. Nesse ambiente farsesco, em que a opacidade é a regra e a forma, o "eu" escapa à vista. E se o sujeito se evade, também fica difícil discernir as questões de honra que lhe dizem respeito. A não ser quando se descobre que a evasão constitui por fim a própria desonra.

MARCELO PEN é professor de teoria literária na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.


QUESTÕES DE HONRA

Autor: Louis Begley
Tradução: Sergio Tellaroli
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 56 (424 págs.)
Avaliação: bom



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