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RODAPÉ LITERÁRIO
Peixes na Pampulha
Freitas recorre à erudição em sua estreia no romance policial com "Peixe Morto", mas não de forma postiça
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
COMO TODA cidade planejada,
croquis e ideia antes de casas
e ruas, Belo Horizonte foi cravada na paisagem mineira como um
vetor de otimismo. Desde o princípio, seu tempo foi um agora acelerado em direção ao futuro, deixando o
mundo das fazendas para trás.
A trama policial de "Peixe Morto",
romance de estreia do poeta e professor de literatura da UFMG Marcus Freitas mostra como, em torno
de uma lagoa artificial, a Pampulha,
símbolo deste sonho de pureza urbana, as marcas da decadência precoce se precipitam num átimo. Falhas se convertem em culpas e, antes
visionário e livre, o olhar estaca, forçado a retomar o diálogo com erros
repetidos, ancestrais.
A fidelidade de Marcus Freitas à
tópica do gênero -evidente desde a
abertura em que o narrador, um historiador da biologia criacionista, é
surpreendido no seu jogging matinal por um corpo boiando, estripado
com cuidados de taxidermista, a boca mantida aberta à força, tomada
por meia dúzia de acarás- é máxima.
Alimentado a especulação imobiliária, estragos ambientais, sexo, poder e golpes financeiros, o suspense
da trama é desvendado a partir da
perspectiva do protagonista, empenhado em provar sua inocência no
assassinato que envolve um empresário endinheirado, fazedor de políticos, e a mulher dele, mais jovem e
sua aluna na universidade.
Entre os episódios que acompanham o narrador hora a hora, da
descoberta do corpo ao desfecho do
caso, capítulos intercalados introduzem grandes saltos temporais, retrospectivos. O leitor vê-se transportado a meados do século 19, estranhando e maravilhando-se com a
terra brasileira aos olhos de naturalistas estrangeiros, Agassiz à frente,
melancolicamente observadores,
excluídos dos costumes locais.
Seu olhar é o avesso do empenho
transformador que a arquitetura de
Niemeyer representa, um misto de
nostalgia e conservacionismo imobilista, não fosse o empenho em colher evidências para refutar Darwin
o moto de sua expedição.
Autor ele mesmo de um ensaio
premiado sobre estas missões científicas do século 19 ("Hartt: Expedições pelo Brasil Imperial, 1865-1878"), Freitas não deixa de recorrer
a outro traço constante, quase tique,
do romance policial contemporâneo: a muleta da erudição.
No seu caso, contudo, ela não é
postiça, antes funcional. Arma o
contraponto entre dois ritmos e
duas miragens, a vertigem urbana e
a dilatação imemorial do tempo da
natureza, no ritmo das chuvas e das
sezões, ambos submetidos ao mesmo olhar vidrado, perplexo e insatisfeito, de homens que não sossegam
nem cá e nem lá. Sem decepcionar
os entusiastas do gênero do entretenimento sem pretensão, "Peixe
Morto" também fisga os que se dispõem a matutar.
PEIXE MORTO
Autor: Marcus Freitas
Editora: Autêntica
Quanto: R$ 29 (208 págs.)
Avaliação: bom
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