São Paulo, sexta-feira, 11 de maio de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

A favor da renúncia e contra a patrulha

Não participo da cólera generalizada contra os acusados de terem violado o painel do Senado. Acho que os três envolvidos, ACM, Arruda e Regina, deveriam renunciar seus mandatos e cargo público não por terem cometido uma grave e condenável falta regimental e constitucional, mas por terem mentido. Foi a mentira que levou Nixon à renúncia da Presidência dos Estados Unidos, e não a escuta que ele teria ordenado, autorizado ou consentido no caso Watergate.
Os três mentiram num primeiro momento. Somente após o laudo técnico da Unicamp, a funcionária disse a verdade, incriminando, em grau diferenciado, mas difícil de ser apurado, os senadores ACM e Arruda.
Um funcionário público, merecedor por estatuto de fé pública, não poderia mentir como a ex-diretora do Prodasen mentiu, negando a violação do painel. Com muitas razões a mais, os senadores, quando assumem a tribuna e falam à nação como pais da pátria -a velha e hoje aposentada metáfora que se dedicava aos senadores em outros tempos-, estão obrigados à verdade.
Todos podem mentir em suas vidas particulares, invocando doenças para faltar a compromissos cansativos, dizendo que estão em reunião para não atender a telefonemas inúteis. Ao ocuparem a tribuna do Senado ou da Câmara, o senador ou o deputado está obrigado à verdade. Ao assumir o mandato, o compromisso com a verdade está embutido no próprio desempenho da função legislativa.
Feito esse longo preâmbulo, o da renúncia como reparação do crime que os três envolvidos cometeram, acho meio imbecil essa onda popular a favor da castidade de um painel eletrônico que já foi, certamente, mais violado do que a mais veterana das prostitutas do mais antigo dos bordéis.
Na comprida sucessão de escândalos na vida pública nacional, o fato em si é quase marginal. Revela que as instituições mais sagradas estão ocupadas por homens que podem falhar -e falham habitualmente. No ""em si", o caso do painel é um ilícito regimental e constitucional, um crime que precisaria ser apurado e punido se não fosse superado por crime maior, que foi o da mentira.
Mas no ""para si", ou seja, nas consequências, tirante o próprio Senado, que saiu arranhado em sua reputação, e a senadora Heloísa Helena, que teria o direito e a obrigação de processar criminal e civilmente os autores da violação, o episódio não prejudicou o povo, embora o tenha irritado.
O caso do painel veio a calhar na estratégia do governo para esconder os escândalos, esses sim, que arrebentaram e continuam arrebentando o erário nacional, criando uma fumaça moralista em torno de um episódio que, embora grave e condenável, é muito menos nocivo.
Em sucessivas crônicas para a página A-2 da Folha, fiz a pergunta clássica que todos fazem diante de um crime: ""O que interessa?". Propositadamente, não usei o dativo (""a quem interessa", ou ""cui prodest" em latim). Usei o ""quid prodest" (o que interessa?), que é impessoal e substantivo.
A resposta é óbvia: a lista dos votos no episódio de uma votação secreta interessava, como todas as votações secretas ou não do Congresso, aos assessores palacianos da Presidência da República, para abastecer o chefe deles com a real temperatura dos congressistas.
Temos pela frente uma sucessão presidencial, e ainda é possível mudar, mais uma vez, a regra do jogo, votando-se uma emenda que instale o parlamentarismo (que em si não é um mal) ou mesmo, se a classe política facilitar, um terceiro mandato para o atual presidente, mantendo-se assim a estrutura do poder em seus diferentes escalões.
Pessoalmente, FHC pode ter o futuro garantido, como primeiro-ministro de um regime de gabinete, como presidente da República pela terceira vez ou como ex-presidente com cacife bastante para ser senador, deputado, embaixador, o que quiser.
Mas a turma do primeiro escalão, que no Planalto ocupa os gabinetes vizinhos ao seu, tem destino incerto. Alguns poderão ser isso ou aquilo na iniciativa privada, mas perderão o acesso ao poder, à formidável receita do bolo. Outros, nem isso.
São eles que precisam conhecer, profissionalmente, os humores do Congresso. Para isso, uma votação secreta tem de ser aberta para eles. Precisam saber como os congressistas estão pensando, de que estão precisando.
Como não atuam no Senado ou na Câmara, têm na figura do líder do governo a ponta de lança para saber como andam as coisas. A mecânica da violação do painel está toda aí.
PS - Apesar de ser a favor da renúncia dos três envolvidos, achando que só assim a falta que cometeram (a mentira) será punida no plano pessoal e absolvida no plano da história, não concordo com a crucificação de Zélia Gattai, de Gal Costa, de Fittipaldi e de todos os que, por isso ou aquilo, se manifestam a favor ou contra os senadores ACM e Arruda. É um direito de cada consciência se manifestar livremente. A patrulha moral ou ideológica é mesquinha, injusta e boçal.



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