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WALTER SALLES
Os fantasmas de Fitzcarraldo e Aguirre
Iquitos, Amazônia peruana.
Antigos prédios coloniais caindo aos pedaços. Cidades-satélites
construídas sobre palafitas, invadindo o rio. Dezenas e dezenas de
mototáxis avançando nas ruas
esburacadas com um zumbido
metálico. Um suor constante nos
corpos e nos rostos.
Como Manaus, Iquitos viveu o
seu apogeu durante o ciclo da
borracha. Depois veio o período
da extração da madeira e, mais
recentemente, o tráfico de drogas
também passou por aqui. Não
mais. Há dois anos, chegaram os
norte americanos do D.E.A., departamento antidrogas. O tráfico
emigrou para a cordilheira ou
procurou refúgio na direção de
Letícia, fronteira com a Venezuela e o Brasil.
Estou aqui para escolher locações para um filme, mas outros
dois não me saem da cabeça:
"Aguirre, a cólera dos deuses" e
"Fitzcarraldo", ambos dirigidos
por Werner Herzog. Foi ao redor
de Iquitos que o diretor alemão
rodou esses filmes. Foi também
por aqui que ele quase morreu
antes das filmagens de "Aguirre".
Teve a intuição de não entrar em
um avião que ia trazê-lo de Lima
a Iquitos. O avião espatifou-se.
Herzog salvou-se.
Esse acontecimento não é um
fato isolado na vida de Herzog.
Na época em que ele fez "Aguirre"
e "Fitzcarraldo", havia uma qualidade quase messiânica, uma fé
inquebrantável a movê-lo, que
podem agora ser conferidas por
todos aqueles que se interessam
pela sua obra. "Aguirre" e "Fitzcarraldo" saíram há pouco em
DVD, com uma reveladora faixa
de comentários do diretor. Um
documentário sobre a relação fratricida entre ele e seu ator-fetiche
Klaus Kinski, intitulado "Meu
Melhor Inimigo", completa o
quadro.
Kinski está extraordinário em
"Aguirre". O filme narra o caos
que se instala no seio de uma das
primeiras expedições espanholas
que partiram à procura do mito
de Eldorado no Amazonas. Malgrado todas as dificuldades de um
filme de época e os obstáculos logísticos que Herzog teve de enfrentar, "Aguirre" foi filmado em
poucas semanas por uma equipe
de nove pessoas... e 450 figurantes.
Herzog conta que tudo que poderia fazer parar a filmagem, como
a enchente que carregou as balsas
cenográficas, era incorporado à
matéria fílmica. O resultado é
uma obra orgânica, essencial. Revisto hoje, "Aguirre" permanece
radicalmente moderno.
A câmera urgente está quase
sempre na mão, perto dos personagens, mas há também momentos voluntariamente estetizados.
Essa escolha arriscada dá surpreendentemente certo, e a síntese entre o documental e o teatral
tem uma força raramente vista
no cinema. Poucos filmes falam
da ganância e da loucura humana de forma tão arrebatadora e
convincente.
A possibilidade de rever "Fitzcarraldo" também projeta luz sobre um filme que foi muitas vezes
acusado de ser tão demente, na
sua feitura, quanto o personagem
que enfoca. Fitzcarraldo foi um
aventureiro europeu que chegou
à Amazônia à procura de borracha e de riqueza fácil. Autocrático, tido por muitos como escravagista, Fitzcarraldo também alimentava o sonho de trazer a ópera até aquela última fronteira.
"Fitzcarraldo", o filme, foi uma
experiência de rodagem tão traumática quanto "Apocalypse
Now", de Francis Ford Coppola.
Um outro documentário, "Burden of Dreams", revela a insanidade do projeto, que se prolongou
durante quase um ano. Como tudo que acontece por trás das câmeras acaba permeando o negativo do filme, essa loucura acaba
passando para a tela.
E ficando, mas não só no cinema. Subindo o rio Amazonas, entre Iquitos e a colônia Santa Izabel, encontramos os restos do barco no qual foi filmado "Fitzcarraldo". O casco está adernado sobre uma das margens do rio, tomado pela ferrugem. O motor foi
retirado ou roubado. Subimos a
bordo. As cabines, o posto de comando, tudo decomposto pelo
tempo.
No meio da abordagem, o tempo subitamente começou a virar.
Um vento varreu o Amazonas,
nuvens surgiram do nada, e uma
tempestade se abateu sobre nós.
Pulamos para o barco que havia
nos trazido ali e, no meio de uma
chuva torrencial, voltamos a
Iquitos. Olhamos para trás e vimos a velha carcaça pela última
vez, até que ela foi lentamente engolfada pela cortina de água.
Ainda ouvimos durante algum
tempo o ranger do velho barco,
que ecoava como um grito agônico de Klaus Kinski.
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