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CONTARDO CALLIGARIS
"Os 120 Dias de Sodoma"
No fim de semana passado,
no Espaço dos Satyros, em
São Paulo, estreou a peça "Os 120
Dias de Sodoma".
O texto e a direção são de Rodolfo García Vazquez, que conseguiu milagrosamente "adaptar"
(digamos assim) a obra que o
marquês de Sade escreveu em
1785, enquanto estava preso na
Bastilha.
A história é conhecida: durante
120 dias, quatro libertinos se fecham num castelo com meninas e
meninos, que foram raptados para servirem de objetos de deboche
-sem limites: os libertinos são
suficientemente poderosos para
que a Justiça dos homens não os
atinja e eles não reconhecem a de
Deus.
Dependendo do leitor, os escritos de Sade podem parecer indigestos ou estimular fantasias sexuais, mas, de qualquer forma,
eles constituem uma peça chave
do quebra-cabeça moderno.
Usando uma expressão famosa
de Georg Lukacs, Sade é talvez a
"máxima consciência possível"
da modernidade incipiente.
Quando o mundo começa a sonhar com uma sociedade de
iguais e a querer realizá-la, Sade
produz uma obra monumental,
em que revela que a vontade e o
exercício do poder são ou se tornaram escabrosamente eróticos.
Como ele mesmo disse, não basta
sacudir os alicerces do antigo regime: para sermos revolucionários, vamos precisar de mais um
esforço.
O poder parou de ser o atributo
exclusivo de algumas castas, mas
ainda não é a hora de festejar a
invenção da liberdade: a paixão
de dominar se alastra por nossa
vida de duas maneiras.
A primeira foi o objeto da reflexão de Michel Foucault: na modernidade, as expressões clássicas
do poder, autoritárias e diretas,
são substituídas por formas capilares de controle. Por exemplo, ao
longo do século 19, a medicina se
encarregou de regulamentar e reprimir práticas sexuais que a lei
não proibia mais.
A segunda é a descoberta de Sade: o poder assombra a fantasia
erótica moderna. Eis como a coisa
funciona, esquematicamente.
Um sujeito se define pela rede de
relações que lhe atribui um lugar
no mundo. Na modernidade, as
relações que mais importam não
são as hierarquias sociais estabelecidas: o sujeito se relaciona, antes de mais nada, por amor e por
paixão, ou seja, por livre escolha.
A conseqüência disso não é um
mundo em que o amor e a paixão
substituiriam a vontade de dominar. Ao contrário: o amor se torna um teatro do poder e a paixão
encontra no domínio ou na submissão um extraordinário recurso para a excitação sexual. Reciprocamente, o exercício do poder
é contaminado por modalidades
de prazer e de gozo aprendidas na
cama, ou seja, por um erotismo
violento, sombrio e, em geral, envergonhado.
Na saída da peça, tocado e mexido, sentei-me para pensar um
pouco, na frente do teatro, na
praça Roosevelt.
Um jovem, moreno e de cabelos
pintados de loiro, com sua caixa
de madeira a tiracolo, insistiu
bastante: "Deixe engraxar, moço". Não se contentava com uma
esmola, queria fazer seu trabalho.
Um homem do antigo regime teria achado normal que alguém se
ajoelhasse para lustrar seus sapatos.
Eu (e não sou o único), por ser
moderno, detesto ficar sentado na
mesa de um bar enquanto alguém lustra meus sapatos. Depois
de assistir à peça, a coisa parecia
mais que detestável: obscena. O
que acabava de acontecer no palco continuava na rua: eu deveria
"gozar" de um privilégio, deixando que alguém "se ajoelhasse" ou
"se acocorasse" aos meus pés.
Na sessão de sábado passado,
no meio da peça, o próprio García
Vazquez congelou a ação para
expulsar um espectador que estava tirando fotos às escondidas. O
episódio deveria ser repetido a cada vez, como parte da peça. Ele
salientaria a extrema coragem do
elenco, que se dispõe a ser vítima
dos olhares cobiçosos dos espectadores. A intenção do fotógrafo,
provavelmente, não era guardar
a lembrança da bunda dos atores,
mas capturar as vítimas e levá-las
para casa (por isso fotografar é
proibido em muitas culturas, por
ser um ato de captura).
No fim da peça, a vontade de
aplaudir é grande, mas aplaudir é
difícil, pois uma disposição cênica
(que o espectador descobrirá) dirige as ovações aos libertinos e a
suas "façanhas".
Alguns (muitos) verão na peça
um comentário sobre os tempos
que estamos vivendo no Brasil.
Aqui, duas observações. 1) Os textos que parecem falar mais diretamente de nossa conjuntura são
do próprio Sade ou de La Boétie
(século 16). 2) O ministro Durcet
não é Zé Dirceu, e o castelo dos
120 dias não é a casa brasiliense
da república de Ribeirão Preto.
Os libertinos de Sade praticam o
mal com a louca grandiosidade
de quem quer desafiar Deus, caso
ele exista. Comparados com eles,
nossos "libertinos" da hora são
pequenos "filisteus".
Pasolini, em 1975, levou "Os 120
Dias" para o cinema e filmou
"Salò". Ele quis revelar, assim, a
erótica assassina do fascismo,
que, na Itália dos anos 70, tentava voltar ao poder. Mas o que faz
a grandeza dessa obra de Pasolini
é a coragem com a qual ele interroga, pelo filme, seus próprios demônios internos e, portanto, os
nossos.
Sade é um autor para pessoas
honestas, honestas consigo mesmas. Era o caso de Pasolini e é o
caso da trupe dos Satyros.
@- ccalligari@uol.com.br
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