São Paulo, segunda-feira, 11 de maio de 2009

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O barulho da contracultura

Saem no Brasil pela primeira vez "Visões de Cody" e "E os Hipopótamos Foram Cozidos em Seus Tanques", obras póstumas de Jack Kerouac e William S. Burroughs, nomes centrais da geração beat

Evening Standard/Getty Images
William S. Burroughs (1914-1997), autor de "O Almoço Nu"

ITALO MORICONI
ESPECIAL PARA A FOLHA

De vez em quando, os dinossauros da contracultura, jovens eternos, saem da tumba e nos revisitam com novos livros resgatados de seus baús.
É o caso de "Visões de Cody" (L&PM), de Jack Kerouac, traduzido agora, 27 anos depois de sua publicação póstuma nos Estados Unidos. E é o caso de "E os Hipopótamos Foram Cozidos em Seus Tanques" (Companhia das Letras), inédito em inglês até o ano passado, escrito a quatro mãos por Kerouac e William S. Burroughs no ano de 1945, bem antes que ambos, e mais o poeta Allen Ginsberg, ficassem famosos como as figuras definidoras da geração beat.
Com a publicação de "Visões de Cody", passa a existir em nossa língua o conjunto de três livros que conferem a Jack Kerouac a chamada imortalidade literária. Os outros dois são "On the Road - Pé na Estrada" (L&PM Pocket, 2004) e "On the Road - Manuscrito Original" (L&PM, 2008). Três obras longas, escritas de um modo que os americanos gostam de chamar de "prosa experimental", com parágrafos intermináveis, misturas de vozes, interrupções na cronologia, digressões infinitas, neologismos. Obras de fôlego que nos deixam sem fôlego, de tão vertiginosas.

Andanças pelos EUA
De formas distintas, contam a mesma história, a amizade estradeira entre Jack Kerouac e Neal Cassady, ficcionalizando seus encontros e aventuras de juventude, nas andanças de costa a costa e pelo interior dos Estados Unidos, sempre envoltos em nuvens de maconha da forte e constantes orgias sexuais alcoolizadas. Sem lenço nem documento. Like a rolling stone. Antes do rock, o jazz. O bebop como trilha sonora e modelo estético.
"On the Road - Pé na Estrada" é a versão clássica e mais arrumada dessa narrativa tripla. Escrito no início dos anos 50, o livro foi finalmente lançado em 1957, saudado desde então como peça destacada na estante universal da literatura libertária. O arrumado do livro resultou da intervenção direta dos agentes e editores. Ao longo de anos, eles sugeriram a um Kerouac ansioso por ver seu livro publicado que fizesse cortes e modificações no ciclópico parágrafo único do manuscrito original, de modo a torná-lo vendável e livre de possíveis processos jurídicos.
"Visões de Cody" foi escrito paralelamente a "On the Road". Publicado três anos depois da morte de Kerouac, ocorrida em 1969, tinha virado lenda literária. Há quem o considere um "On the Road" mais autêntico. Porém, são substanciais as diferenças entre os dois textos, e elas vão bem além do fato de Neal ser aqui batizado de Cody Pomeray e não Dean Moriarty.
"Visões" é mais fragmentário, mais radicalmente experimental. Acentua menos a experiência estradeira e mais as percepções ("visões") que o narrador tem, tanto da figura de Neal/Cody, quanto da própria realidade. Em comum nos dois livros, o sonho americano como nostalgia impossível, recuperável apenas pela vivência marginal e sem limites. A presente edição de "Visões de Cody" inclui posfácio de Allen Ginsberg, que funciona como um excelente guia auxiliar de leitura.

Crime ficcionalizado
Bem diferente é "Hipopótamos", escrito por Kerouac e Burroughs pouco antes da entrada de Neal Cassady em suas vidas, quando ambos eram apenas personagens obscuros da boêmia estudantil nova-iorquina. O livro ficcionaliza de maneira linear um fato real, rumoroso, acontecido em 1944: o crime cometido por um amigo dos dois, Lucien Carr, que matou outro amigo comum, David Kammerer. Estes tinham um envolvimento homossexual aparentemente platônico, e o que garantiu a Carr uma pena leve foi a alegação de legítima defesa por assédio sexual.
Depois de sair da prisão, Carr fez longa carreira de sucesso como diretor da United Press International, bem casado com mulher, afastado dos antigos amigos. O livro só teve autorização legal para ser publicado após sua morte, em 2005.
"Hipopótamos" é resgate de primeira grandeza para aficcionados dos beats. Apesar de seu valor literário ter sido questionado pelo próprio Burroughs, o enredo prende o leitor, que aborda o livro só querendo saber das circunstâncias do crime, pois o final já é conhecido. Os capítulos escritos alternadamente pelos autores evidenciam com mestria a cumplicidade de ambos na criação do clima tenso que levou ao ato.
Podemos ver também no livro embriões de qualidades da escrita de cada um deles: agudeza conceitual de Burroughs, poder descritivo em Kerouac. Enquanto retrato íntimo da juventude boêmia nova-iorquina no tempo da guerra, é documento valioso. Traz de volta um tempo dinossauro, anterior à dominante feminista e gay.


ITALO MORICONI é crítico literário, poeta, organizador de títulos como "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século" (Objetiva) e professor de literatura da UERJ.

VISÕES DE CODY
Autor: Jack Kerouac
Tradução: Guilherme da Silva Braga
Editora: L&PM
Quanto: a definir (447 págs.)
Avaliação: bom

E OS HIPOPÓTAMOS FORAM COZIDOS EM SEUS TANQUES
Autores: William S. Burroughs e Jack Kerouac
Tradução: Alexandre Barbosa de Souza
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 34 (169 págs.; os livros estão previstos para serem lançados nesta sexta-feira)
Avaliação: bom


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