|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RODAPÉ
Escrevendo em casa
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
A atenção especial que, nos
últimos anos, os estudos culturais dedicam à literatura feita
por mulheres é um segredo de polichinelo. Em princípio, interesse
crítico nunca é demasiado, mas o
olhar armado da militância é uma
forma branda de cegueira. De Clarice Lispector a Gertrude Stein, de
Carolina Maria de Jesus a Nathalie
Sarraute, de Jane Austen a Pagu,
para além da comum condição feminina, os abismos e as diferenças
que separam o como cada uma
delas dá forma à própria experiência são o essencial. Todo cuidado é
pouco para não afogar as escritoras numa euforia numérica homogeneizada -coletâneas, hoje,
agrupam as autoras em dezenas-, reverso do tempo em que se celebrava a excepcionalidade de uma
ou outra sobrevivente em território hostil. Estatísticas, assim como
tristeza ou euforia, desgraçadamente não pagam dívidas.
Batalhas teóricas à parte, a progressiva conquista de um "teto todo seu", imagem feliz de Virginia
Woolf para a emancipação de
uma identidade atrelada à esfera
doméstica, subordinada a uma
mão masculina segura, é condição
sem a qual as vocações literárias
femininas seguiriam raras ou passariam em branco. Aliás, duas coletâneas recém-lançadas pela editora Cosacnaify -os "Contos
Completos" (472 págs., R$ 59), da
própria Virginia Woolf (1882-1941), e "Contos", de Katherine
Mansfield (1888-1923)- dão testemunho de como, sob condições
favoráveis, a política de cotas é dispensável. Certo que as duas escritoras fizeram valer seu talento
num meio aristocrático, cultivado
e livre de restrições moralistas -a
Londres das primeiras décadas do
século 20, em que floresceu o grupo de Bloomsbury-, mas quem
ainda se lembra de Leonard
Woolf, o editor, marido de Virginia, ou de John Middleton Murry,
o crítico casado com Katherine
Mansfield?
O caso da neozelandesa é paradigmático. No curto período que
separa sua chegada à Inglaterra,
em 1908, como estudante de violoncelo, à sua morte prematura,
tuberculosa, em 1923, quatro livros pontuam uma vida livre de
amarras de qualquer ordem: um
casamento aberto, muitos amantes, a expressão direta e sem meias
palavras, indiferente à noção do
que fosse "próprio" ou "impróprio" para uma mulher. A atitude
corajosa era invejada pela autora
de "Mrs. Dalloway", Virginia, numa relação marcada pela rivalidade literária nem sempre velada.
A coletânea brasileira recém-lançada mostra, contudo, como
esta existência movimentada e
pouco caseira, cristalizou-se numa
escrita paradoxalmente centrada
na esfera íntima e cotidiana, encontrando sua forma ideal na brevidade reveladora do conto. Seu
trunfo maior não é, como o de Virginia Woolf, uma inovação formal
modernista decisiva, o perspectivismo que brota da multiplicação
de monólogos interiores entrelaçados. Está, antes, numa simplicidade enganosa, de enorme acuidade psicológica e força simbolizante. Seus enredos, rarefeitos, revelam frustrações e aspirações na
banalidade da convivência diária,
em família, nos gestos despercebidos, subitamente iluminados.
Nem por isto são insensíveis às assimetrias sociais ou ao mundo do
trabalho, mas sempre refratado
nos domínios da casa.
Nos longos contos autobiográficos, passados nos subúrbios abastados de Wellington ("Prelúdio" e
"A Casa de Bonecas") ou nas casas
de veraneio ("Na Baía"), nos quais
crianças, criadas, casais e agregados de várias gerações compõem
uma variada e movimentada galeria de configurações psicológicas,
os homens são perdidos visitantes
ocasionais, incapazes de apreender a lógica doméstica.
A casa pode, ainda, converter-se
em clausura que acomoda a solidão feminina, como na tocante
história da velhinha que alimenta
a ilusão de solidariedade sentando-se, toda arrumada, regularmente no mesmo banco de praça
("Srta. Brill") ou na jóia do volume, "As Filhas do Falecido Coronel", em que as irmãs solteironas,
Josephine e Constantia, perdem,
com o pai, o pretexto da existência. Prerrogativa feminina ou não,
a força lírica da obra de Katherine
Mansfield se impõe e se basta.
Fábio De Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço
Contos
Autor: Katherine Mansfield
Tradução: Carlos Eugênio Marcondes e
Alexandre Barbosa de Souza
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 39 (288 págs.)
Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: Música: Coldplay lança disco e "pede" atitude positiva Índice
|