São Paulo, sábado, 11 de junho de 2005

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RODAPÉ

Escrevendo em casa

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

A atenção especial que, nos últimos anos, os estudos culturais dedicam à literatura feita por mulheres é um segredo de polichinelo. Em princípio, interesse crítico nunca é demasiado, mas o olhar armado da militância é uma forma branda de cegueira. De Clarice Lispector a Gertrude Stein, de Carolina Maria de Jesus a Nathalie Sarraute, de Jane Austen a Pagu, para além da comum condição feminina, os abismos e as diferenças que separam o como cada uma delas dá forma à própria experiência são o essencial. Todo cuidado é pouco para não afogar as escritoras numa euforia numérica homogeneizada -coletâneas, hoje, agrupam as autoras em dezenas-, reverso do tempo em que se celebrava a excepcionalidade de uma ou outra sobrevivente em território hostil. Estatísticas, assim como tristeza ou euforia, desgraçadamente não pagam dívidas.
Batalhas teóricas à parte, a progressiva conquista de um "teto todo seu", imagem feliz de Virginia Woolf para a emancipação de uma identidade atrelada à esfera doméstica, subordinada a uma mão masculina segura, é condição sem a qual as vocações literárias femininas seguiriam raras ou passariam em branco. Aliás, duas coletâneas recém-lançadas pela editora Cosacnaify -os "Contos Completos" (472 págs., R$ 59), da própria Virginia Woolf (1882-1941), e "Contos", de Katherine Mansfield (1888-1923)- dão testemunho de como, sob condições favoráveis, a política de cotas é dispensável. Certo que as duas escritoras fizeram valer seu talento num meio aristocrático, cultivado e livre de restrições moralistas -a Londres das primeiras décadas do século 20, em que floresceu o grupo de Bloomsbury-, mas quem ainda se lembra de Leonard Woolf, o editor, marido de Virginia, ou de John Middleton Murry, o crítico casado com Katherine Mansfield?
O caso da neozelandesa é paradigmático. No curto período que separa sua chegada à Inglaterra, em 1908, como estudante de violoncelo, à sua morte prematura, tuberculosa, em 1923, quatro livros pontuam uma vida livre de amarras de qualquer ordem: um casamento aberto, muitos amantes, a expressão direta e sem meias palavras, indiferente à noção do que fosse "próprio" ou "impróprio" para uma mulher. A atitude corajosa era invejada pela autora de "Mrs. Dalloway", Virginia, numa relação marcada pela rivalidade literária nem sempre velada.
A coletânea brasileira recém-lançada mostra, contudo, como esta existência movimentada e pouco caseira, cristalizou-se numa escrita paradoxalmente centrada na esfera íntima e cotidiana, encontrando sua forma ideal na brevidade reveladora do conto. Seu trunfo maior não é, como o de Virginia Woolf, uma inovação formal modernista decisiva, o perspectivismo que brota da multiplicação de monólogos interiores entrelaçados. Está, antes, numa simplicidade enganosa, de enorme acuidade psicológica e força simbolizante. Seus enredos, rarefeitos, revelam frustrações e aspirações na banalidade da convivência diária, em família, nos gestos despercebidos, subitamente iluminados. Nem por isto são insensíveis às assimetrias sociais ou ao mundo do trabalho, mas sempre refratado nos domínios da casa.
Nos longos contos autobiográficos, passados nos subúrbios abastados de Wellington ("Prelúdio" e "A Casa de Bonecas") ou nas casas de veraneio ("Na Baía"), nos quais crianças, criadas, casais e agregados de várias gerações compõem uma variada e movimentada galeria de configurações psicológicas, os homens são perdidos visitantes ocasionais, incapazes de apreender a lógica doméstica.
A casa pode, ainda, converter-se em clausura que acomoda a solidão feminina, como na tocante história da velhinha que alimenta a ilusão de solidariedade sentando-se, toda arrumada, regularmente no mesmo banco de praça ("Srta. Brill") ou na jóia do volume, "As Filhas do Falecido Coronel", em que as irmãs solteironas, Josephine e Constantia, perdem, com o pai, o pretexto da existência. Prerrogativa feminina ou não, a força lírica da obra de Katherine Mansfield se impõe e se basta.


Fábio De Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço

Contos
    
Autor: Katherine Mansfield
Tradução: Carlos Eugênio Marcondes e Alexandre Barbosa de Souza
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 39 (288 págs.)


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