São Paulo, sábado, 11 de junho de 2005

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Boa causa do Live 8 não é sinônimo de qualidade

KELEFA SANNEH
DO "NEW YORK TIMES"

"Os garotos e garotas com guitarras finalmente vão transformar o mundo", proclamou recentemente sir Bob Geldof. E se os novos transformadores de mundo não pareciam especialmente qualificados para o serviço, esse era exatamente o ponto: artistas profissionais estavam se transformando em agitadores amadores, tudo por uma boa causa. Sir Bob estava anunciando o programa do Live 8, uma seqüência de seu concerto Live Aid de 1985, um show beneficente de tamanho sucesso que lhe valeu um título honorífico geralmente não concedido a ex-membros de bandas com nomes como Boomtown Rats.
Serão seis concertos Live 8: cinco em cinco cidades (Londres, Berlim, Paris, Roma e Filadélfia) em 2 de julho e um sexto em Edimburgo, na Escócia, em 6 de julho, todos marcados para coincidir com a reunião de cúpula do G-8 deste ano. Enquanto o show de 1985 pretendia angariar dinheiro, este pretende despertar consciências: a confluência de fãs e astros deverá pressionar os líderes mundiais a aceitar um plano para cancelar a dívida, revisar regulamentos comerciais e aumentar a ajuda para os países pobres.
A programação completa está no site (live8live.com), e o concerto britânico está cheio dos suspeitos de sempre: sir Elton John, sir Paul McCartney, o próprio sir Bob. Também há alguns plebeus na lista, incluindo Madonna, REM e, inevitavelmente, o U2.
Como muitos eventos musicais de nobres intenções, o Live 8 representa uma troca de prestígio de duas vias: o concerto e a causa ganham estatura por causa dos astros pop envolvidos e os astros pop ganham estatura (e, se se esforçarem bastante, um título de cavaleiro) com o show e a causa que eles apóiam.
É por isso que os organizadores tendem a preferir apresentações valorizadas como a do U2 - uma banda séria para uma ocasião séria. E para um grupo como o Coldplay, que faz campanha não muito secreta para suceder (isto é, substituir) o U2 como principal fornecedor mundial de seriedade nos estádios.
Muitos criticaram os organizadores do concerto por se apoiar demais em roqueiros sérios. Quando o programa foi anunciado pela primeira vez, o astro senegalês Youssou N'Dour era o único artista africano, e houve queixas de que a música não combinava com a mensagem. Andy Kershaw, um apresentador de TV que trabalhou no Live Aid original, disse que essa omissão era "uma desgraça". Ele se perguntou como os organizadores do show podiam pedir ao mundo para não esquecer a África enquanto faziam isso.
Toda essa confusão poderia parecer estranha para o público americano, mas no Reino Unido a música por uma boa causa tem uma longa tradição; ela costuma ter a moral elevada em seu conceito e ser vulgar em sua execução. No inverno passado, dezenas de astros pop (mais uma vez sob a direção de sir Bob) se uniram para regravar o horrível rock-caridade "Do They Know It's Christmas?" para ajudar os refugiados de Darfur.
Todos os envolvidos descreveram o projeto simplesmente como uma causa nobre, mas, para o público britânico, parte do apelo era ver os astros fazendo "bico" como funcionários públicos, grandes nomes saindo de seus personagens para praticar uma boa ação. Projetos como esse ajudam a convencer o público e também os artistas de que no fundo os astros pop são pessoas normais e amistosas, participantes de uma única comunidade benevolente.
A América produziu muitos projetos musicais bem-intencionados, mas nos EUA os astros pop tendem menos a fingir que são todos iguais, ou a reconhecer que um personagem midiático exagerado possa coexistir com um cidadão decente e preocupado. Você não esperaria ouvir, por exemplo, 50 Cent gravar uma canção de Natal, por melhor que seja a causa.
Por acaso, 50 Cent é um dos artistas que deverá se apresentar no concerto de Filadélfia, ao lado de Jay-Z, Stevie Wonder, P. Diddy, Dave Matthews Band e outros. Esse programa poderá conquistar para sir Bob mais publicidade gratuita; certamente é apenas questão de tempo para que alguma alma séria proteste contra a presença de 50 Cent, cujas rimas não são carregadas de boas intenções. Mas 50 Cent tem pelo menos uma vantagem sobre a maioria dos outros artistas do Live 8: ele ainda faz ótimos discos. E em concertos para despertar consciências como este, em que o artista é meramente o meio pelo qual os organizadores transmitem uma mensagem, a presença de 50 Cent é um lembrete bem-vindo de que os músicos podem apoiar causas sem incorporá-las. Se é um pouco desconcertante escutá-lo despertar a consciência sobre a Aids na África, lembre-se de que poderia ser pior -ele poderia estar perguntando se sabem que é Natal na África.


Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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