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Boa causa do Live 8 não é sinônimo de qualidade
KELEFA SANNEH
DO "NEW YORK TIMES"
"Os garotos e garotas com guitarras finalmente vão transformar
o mundo", proclamou recentemente sir Bob Geldof. E se os novos transformadores de mundo
não pareciam especialmente qualificados para o serviço, esse era
exatamente o ponto: artistas profissionais estavam se transformando em agitadores amadores,
tudo por uma boa causa. Sir Bob
estava anunciando o programa
do Live 8, uma seqüência de seu
concerto Live Aid de 1985, um
show beneficente de tamanho sucesso que lhe valeu um título honorífico geralmente não concedido a ex-membros de bandas com
nomes como Boomtown Rats.
Serão seis concertos Live 8: cinco em cinco cidades (Londres,
Berlim, Paris, Roma e Filadélfia)
em 2 de julho e um sexto em
Edimburgo, na Escócia, em 6 de
julho, todos marcados para coincidir com a reunião de cúpula do
G-8 deste ano. Enquanto o show
de 1985 pretendia angariar dinheiro, este pretende despertar
consciências: a confluência de fãs
e astros deverá pressionar os líderes mundiais a aceitar um plano
para cancelar a dívida, revisar regulamentos comerciais e aumentar a ajuda para os países pobres.
A programação completa está
no site (live8live.com), e o concerto britânico está cheio dos suspeitos de sempre: sir Elton John,
sir Paul McCartney, o próprio sir
Bob. Também há alguns plebeus
na lista, incluindo Madonna,
REM e, inevitavelmente, o U2.
Como muitos eventos musicais
de nobres intenções, o Live 8 representa uma troca de prestígio
de duas vias: o concerto e a causa
ganham estatura por causa dos
astros pop envolvidos e os astros
pop ganham estatura (e, se se esforçarem bastante, um título de
cavaleiro) com o show e a causa
que eles apóiam.
É por isso que os organizadores
tendem a preferir apresentações
valorizadas como a do U2 - uma
banda séria para uma ocasião séria. E para um grupo como o
Coldplay, que faz campanha não
muito secreta para suceder (isto é,
substituir) o U2 como principal
fornecedor mundial de seriedade
nos estádios.
Muitos criticaram os organizadores do concerto por se apoiar
demais em roqueiros sérios.
Quando o programa foi anunciado pela primeira vez, o astro senegalês Youssou N'Dour era o único
artista africano, e houve queixas
de que a música não combinava
com a mensagem. Andy Kershaw,
um apresentador de TV que trabalhou no Live Aid original, disse
que essa omissão era "uma desgraça". Ele se perguntou como os
organizadores do show podiam
pedir ao mundo para não esquecer a África enquanto faziam isso.
Toda essa confusão poderia parecer estranha para o público
americano, mas no Reino Unido a
música por uma boa causa tem
uma longa tradição; ela costuma
ter a moral elevada em seu conceito e ser vulgar em sua execução.
No inverno passado, dezenas de
astros pop (mais uma vez sob a
direção de sir Bob) se uniram para regravar o horrível rock-caridade "Do They Know It's Christmas?" para ajudar os refugiados
de Darfur.
Todos os envolvidos descreveram o projeto simplesmente como uma causa nobre, mas, para o
público britânico, parte do apelo
era ver os astros fazendo "bico"
como funcionários públicos,
grandes nomes saindo de seus
personagens para praticar uma
boa ação. Projetos como esse ajudam a convencer o público e também os artistas de que no fundo
os astros pop são pessoas normais
e amistosas, participantes de uma
única comunidade benevolente.
A América produziu muitos
projetos musicais bem-intencionados, mas nos EUA os astros
pop tendem menos a fingir que
são todos iguais, ou a reconhecer
que um personagem midiático
exagerado possa coexistir com
um cidadão decente e preocupado. Você não esperaria ouvir, por
exemplo, 50 Cent gravar uma
canção de Natal, por melhor que
seja a causa.
Por acaso, 50 Cent é um dos artistas que deverá se apresentar no
concerto de Filadélfia, ao lado de
Jay-Z, Stevie Wonder, P. Diddy,
Dave Matthews Band e outros. Esse programa poderá conquistar
para sir Bob mais publicidade
gratuita; certamente é apenas
questão de tempo para que alguma alma séria proteste contra a
presença de 50 Cent, cujas rimas
não são carregadas de boas intenções. Mas 50 Cent tem pelo menos
uma vantagem sobre a maioria
dos outros artistas do Live 8: ele
ainda faz ótimos discos. E em
concertos para despertar consciências como este, em que o artista é meramente o meio pelo
qual os organizadores transmitem uma mensagem, a presença
de 50 Cent é um lembrete bem-vindo de que os músicos podem
apoiar causas sem incorporá-las.
Se é um pouco desconcertante escutá-lo despertar a consciência
sobre a Aids na África, lembre-se
de que poderia ser pior -ele poderia estar perguntando se sabem
que é Natal na África.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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