São Paulo, domingo, 11 de junho de 2006

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FERREIRA GULLAR

Craques da minha vida


Dois de meus parceiros de pelada tornaram-se ídolos das torcidas: Esmagado e Canhoteiro

COMO O assunto no Brasil de hoje é o futebol, aproveito para dizer que sou filho de um antigo centroavante do Luso Brasileiro Futebol Clube, que foi tantas vezes campeão maranhense.
Ele se chamava Newton Ferreira, e foi na qualidade de craque da seleção maranhense que, em 1929, conheceu o Rio de Janeiro, um ano antes de nascer o seu filho José, ou seja, eu, também conhecido como Periquito.
Disputava-se o Campeonato Brasileiro, e a seleção maranhense, campeã do Norte e Nordeste, veio ao Rio enfrentar a seleção carioca. Foi recebida, no palácio do Catete, pelo presidente Washington Luís e, no dia seguinte, adentrou o gramado disposta a vencer. Mas perdeu: perdeu para os cariocas de 9 a 0 e saiu de campo debaixo de vaias e sob uma chuva de chupas-de-laranja.
Isso foi meu pai mesmo que me contou, muitos anos depois, quando o trouxe ao Rio para tratar da saúde. Talvez tenha sido dele que herdei esta disposição para rir de mim mesmo. Ele ria da derrota e eu ria com ele.
Mas minha relação com o futebol não se limita a isso, já que, sem o mesmo talento que ele, joguei no infantil do Ferroviário Futebol Clube, sem contar as peladas no Campo do Ourique, em frente ao Mercado Novo. Bem, já então Newton Ferreira abandonara o futebol e se tornara um pequeno comerciante, mas ainda me levava para assistir, aos domingos, às partidas do Luso.
Minha carreira futebolística terminou quando sofri uma violenta rasteira e caí de bunda no chão. Temi ter quebrado o espinhaço e vi que seria melhor dedicar-me a esporte menos brabo; a poesia, por exemplo.
Troquei a rua pelo quarto, onde agora passava os dias lendo, enquanto meus companheiros de pelada seguiram seu rumo. Dois deles se tornaram craques de futebol, amados das respectivas torcidas: Esmagado, que fez sua carreira lá mesmo em São Luís do Maranhão, e Canhoteiro, que se tornou ídolo da torcida do São Paulo.
Quando, aos 21 anos, me mudei para o Rio de Janeiro, já os tinha perdido de vista e quase me esquecera do futebol -eu, que era vascaíno doente, que pusera o nome do Vasco em meu time de botão.
Muito anos depois, numa das minhas idas a São Luís, reencontrei Esmagado, já fora do futebol, mas admirado pelos fãs. Passeamos juntos pelas ruas da Madre-Deus, num sábado à noite, quando pude ver como o povão o admirava e se aproximava de nós para abraçá-lo e conversar.

Ídolo são-paulino
De Canhoteiro, tive notícias através dos jornais: era chamado de "o Garrincha do Morumbi", tão sensacionais eram os dribles que dava nos adversários, com o mesmo espírito moleque das peladas de infância. Jogou na seleção brasileira e conquistou legiões de fãs, entre os quais o menino Chico, filho de Sérgio Buarque de Holanda.
Certo domingo, pela televisão, o vi jogar. Mal acreditei: ali estava, com as mesmas gingas, o Canhoteiro das partidas em frente ao Mercado Novo. Nesse mercado, o pai dele, seu Cecílio, tinha uma banca onde vendia mingau de milho e tapioca. Era lá que, todas as manhãs, bem cedo, quebrava o jejum antes de seguir para o colégio.
Ele não via com bons olhos aquela obsessão do filho pelo futebol. Queria que o filho estudasse, em vez de jogar bola. "O que vai ser desse menino quando crescer? Vai terminar vendendo mingau no mercado que nem eu?"
Newton Ferreira procurava tranquilizá-lo: "Nada disso, seu Cecílio, o menino vai ser um craque da bola. Ouça o que estou lhe dizendo". Mas é que, naquela época, ser um craque da bola no Maranhão, em matéria de grana, não queria dizer grande coisa. "Você foi um craque e acabou quitandeiro. Quero que meu filho seja doutor, seu Ferreira, isso o que eu quero", dizia Cecílio.
Canhoteiro já era gênio aos dez anos de idade. Prendia a ponta da camisa na mão, enfiava dois dedos na boca (ele ainda chupava dedo) e saía driblando todo mundo com extraordinária habilidade. Tive, assim, a glória de trocar passes com ele, muito antes que a fama o coroasse.
Um dia confidenciei a um cronista esportivo -se não me engano, ao Armando Nogueira- que tinha sido colega de infância de Canhoteiro, e ele logo pensou em promover um encontro de nós dois, na primeira oportunidade que o São Paulo viesse jogar no Rio. O encontro não houve, mas, quando falou de mim a Canhoteiro, este exclamou:
-Não me diga, o Periquito virou poeta?!


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