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Iberê apresenta mundo que "resiste à ordenação"
Críticos ouvidos pela Folha relacionam obra a impasses da arte e da vida do pintor
Iberê partiu de Morandi para tornar os objetos "ameaçadoramente próximos" e "explodir" a serenidade das coisas
DA REPORTAGEM LOCAL
"Instabilidade do mundo",
que "resiste à ordenação", e
conteúdo "fortemente trágico",
por vezes "melancólico", "enigmático" e "sombrio".
Os adjetivos e descrições para a obra expressionista de Iberê Camargo (1914-1994) apresentados separadamente por
alguns dos principais críticos
do país fazem sentido juntos e
dão uma idéia clara de sua obra.
Essa "instabilidade do mundo" -expressão do crítico Paulo Sergio Duarte-, que pode
aparecer mais angustiada nos
carretéis e seus derivados, mais
melancólica nos ciclistas, figuras comuns ao seu trabalho de
pintor e de gravurista, dá margem a interpretações que associam a obra de Iberê ao desenvolvimento da arte contemporânea, a contextos sociais e a
percalços de sua vida.
"O importante", diz Duarte,
"é que tudo tem qualidade". "As
paisagens, do início da carreira,
já nascem com uma qualidade
imensa". E a tal instabilidade, o
desequilíbrio, ele diz, já está lá
nos carretéis, que predominam
na produção de Iberê no final
da década de 50 e que ele vai
pintar como naturezas-mortas,
a partir de modelos reais. "O
mundo, para ele, não é uma coisa em equilíbrio. Entre um
clássico e um romântico, se você for fazer a comparação, ele é
claramente um romântico."
Morandi diferente
Iberê tinha interesse no pintor italiano Giorgio Morandi
(1890-1964) -autor de naturezas-mortas de objetos simples
como garrafas, chaleiras e vasilhames-, diz o crítico Rodrigo
Naves, e seus carretéis "têm alguma semelhança com as obras
de Morandi". "Mas", completa,
"a solução que ele dá para esse
diálogo é muito diferente".
"Em vez de partir do Morandi como possibilidade de aproximar mais harmonicamente
as coisas", diz Naves, "a sua interpretação é quase oposta".
"As coisas ficam ameaçadoramente próximas e explode essa
serenidade."
Para Sônia Salzstein, professora do departamento de Artes
Plásticas da USP, "a obra de
Iberê viveu, de forma extremamente radical, os grandes problemas do século 20". "Você
consegue acompanhar os grandes impasses, as grandes questões do século 20. Desde a solidão do artista, a melancolia
burguesa do artista no pós-guerra. Aqueles carretéis falam
de uma experiência da alienação do sujeito, que precisa dos
objetos para recuperar algo da
sua humanidade -algo que está no melhor da arte européia
desse período", diz.
No passo seguinte, a partir
dos anos 60, os carretéis vão
mais e mais se tornando formas
abstratas. "A figuração vai se
reduzindo cada vez mais", ela
diz, "se transformando cada
vez em algo mais enigmático e
sombrio, e tudo isso convoca a
percepção das texturas. Há ainda uma melancolia nesse tratamento da matéria".
"Nos primeiros anos da década de 60, aquela sobriedade,
aquela espécie de estoicismo, já
não se contém mais. Não por
acaso é um período grave no
debate de idéias, que testemunha o triunfo de uma cultura
comercial e o fracasso de todas
as tentativas de uma arte autônoma, de criação", ela diz.
Desesperança
Os ciclistas, que surgem na
década de 80, são para Salzstein
uma espécie de retorno à "sobriedade dos primeiros carretéis". "Mas é uma sobriedade
desesperançada. Recupera
uma linha de horizonte, as figures se inscrevem dentro dessa
linha, evoca aquele tipo de sobriedade, mas não estóica. Uma
sobriedade que resulta de desesperança e esvaziamento."
O aparecimento da figura humana é posterior ao assassinato a tiros, cometido por Iberê,
de um homem que, de calção e
sem camisa, estaria brigando
com a mulher, no bairro de Botafogo, no Rio, em 1980. Teria,
em seguida, ameaçado Iberê,
que andava armado. O pintor
alegou legítima defesa, foi julgado e inocentado.
"Essa fase coincide -não estou dizendo que é determinado- com a tragédia na vida dele", diz Duarte.
(RAFAEL CARIELLO)
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