São Paulo, terça-feira, 11 de julho de 2006

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Iberê apresenta mundo que "resiste à ordenação"

Críticos ouvidos pela Folha relacionam obra a impasses da arte e da vida do pintor

Iberê partiu de Morandi para tornar os objetos "ameaçadoramente próximos" e "explodir" a serenidade das coisas

DA REPORTAGEM LOCAL

"Instabilidade do mundo", que "resiste à ordenação", e conteúdo "fortemente trágico", por vezes "melancólico", "enigmático" e "sombrio".
Os adjetivos e descrições para a obra expressionista de Iberê Camargo (1914-1994) apresentados separadamente por alguns dos principais críticos do país fazem sentido juntos e dão uma idéia clara de sua obra.
Essa "instabilidade do mundo" -expressão do crítico Paulo Sergio Duarte-, que pode aparecer mais angustiada nos carretéis e seus derivados, mais melancólica nos ciclistas, figuras comuns ao seu trabalho de pintor e de gravurista, dá margem a interpretações que associam a obra de Iberê ao desenvolvimento da arte contemporânea, a contextos sociais e a percalços de sua vida.
"O importante", diz Duarte, "é que tudo tem qualidade". "As paisagens, do início da carreira, já nascem com uma qualidade imensa". E a tal instabilidade, o desequilíbrio, ele diz, já está lá nos carretéis, que predominam na produção de Iberê no final da década de 50 e que ele vai pintar como naturezas-mortas, a partir de modelos reais. "O mundo, para ele, não é uma coisa em equilíbrio. Entre um clássico e um romântico, se você for fazer a comparação, ele é claramente um romântico."

Morandi diferente
Iberê tinha interesse no pintor italiano Giorgio Morandi (1890-1964) -autor de naturezas-mortas de objetos simples como garrafas, chaleiras e vasilhames-, diz o crítico Rodrigo Naves, e seus carretéis "têm alguma semelhança com as obras de Morandi". "Mas", completa, "a solução que ele dá para esse diálogo é muito diferente".
"Em vez de partir do Morandi como possibilidade de aproximar mais harmonicamente as coisas", diz Naves, "a sua interpretação é quase oposta". "As coisas ficam ameaçadoramente próximas e explode essa serenidade."
Para Sônia Salzstein, professora do departamento de Artes Plásticas da USP, "a obra de Iberê viveu, de forma extremamente radical, os grandes problemas do século 20". "Você consegue acompanhar os grandes impasses, as grandes questões do século 20. Desde a solidão do artista, a melancolia burguesa do artista no pós-guerra. Aqueles carretéis falam de uma experiência da alienação do sujeito, que precisa dos objetos para recuperar algo da sua humanidade -algo que está no melhor da arte européia desse período", diz.
No passo seguinte, a partir dos anos 60, os carretéis vão mais e mais se tornando formas abstratas. "A figuração vai se reduzindo cada vez mais", ela diz, "se transformando cada vez em algo mais enigmático e sombrio, e tudo isso convoca a percepção das texturas. Há ainda uma melancolia nesse tratamento da matéria".
"Nos primeiros anos da década de 60, aquela sobriedade, aquela espécie de estoicismo, já não se contém mais. Não por acaso é um período grave no debate de idéias, que testemunha o triunfo de uma cultura comercial e o fracasso de todas as tentativas de uma arte autônoma, de criação", ela diz.

Desesperança
Os ciclistas, que surgem na década de 80, são para Salzstein uma espécie de retorno à "sobriedade dos primeiros carretéis". "Mas é uma sobriedade desesperançada. Recupera uma linha de horizonte, as figures se inscrevem dentro dessa linha, evoca aquele tipo de sobriedade, mas não estóica. Uma sobriedade que resulta de desesperança e esvaziamento."
O aparecimento da figura humana é posterior ao assassinato a tiros, cometido por Iberê, de um homem que, de calção e sem camisa, estaria brigando com a mulher, no bairro de Botafogo, no Rio, em 1980. Teria, em seguida, ameaçado Iberê, que andava armado. O pintor alegou legítima defesa, foi julgado e inocentado.
"Essa fase coincide -não estou dizendo que é determinado- com a tragédia na vida dele", diz Duarte.
(RAFAEL CARIELLO)


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