São Paulo, quarta-feira, 11 de julho de 2007

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Senhora Liberdade


A Estátua da Liberdade não é, em rigor, uma estátua; ela é um símbolo, uma história, uma promessa


UMA SENHORA não merece assobios. Questão de educação. Ou, como dizia Wilde pela boca de um personagem, as maneiras são anteriores à moral. O público que esteve presente no circo das Sete Maravilhas do Mundo não concorda com a tese e visivelmente não aprendeu as maneiras em casa. Bastou esperar pelo momento em que a Estátua da Liberdade, indicada para a lista final, apareceu nos écrans do estádio da Luz, em Lisboa. O estádio desabou em apupos e pateadas. Como na canção, "the lady is a tramp".
Pena. Concordo que a Estátua da Liberdade não é prodígio escultórico ou arquitetônico. Ao vivo, é até um poderoso anticlímax. Tamanho pequeno. Tosca de formas. Inexpressiva como objeto artístico. Comparada com os eleitos, perde em pontuação técnica ou estética, apesar de seis deles serem produto de sociedades bárbaras ou escravagistas -um pormenor histórico que não incomoda as consciências humanitárias (e antiamericanas) do público. Ou julgavam que a China imperial, a Índia muçulmana, as civilizações maia e inca, os nabateus do Oriente Médio e a Roma dos Césares eram um parque de diversões?
Mas a Estátua da Liberdade não é, em rigor, uma estátua. Ela é um símbolo, uma história, uma promessa: a promessa de que, apesar de tudo, e de tanto, seria sempre possível recomeçar. Eis a promessa que recebeu milhões de seres humanos na chegada a Ellis Island. E que tinham na estátua -tamanho pequeno, tosca de formas, inexpressiva como objeto artístico- a primeira senhora gentil em dias ou meses de viagem agreste. Nos filmes de Coppola ou nas páginas de McCourt, a estátua confunde-se com o olhar grato do imigrante que a encontra pela primeira vez, ou pela milésima vez, contando com todas as vezes em que ela aparecia nos sonhos.
A estátua era um porto de chegada, sim. Mas era também um porto de partida: a última visão de casa para meio milhão de rapazes que não regressaram da Europa. Cem mil não regressaram em 1918. Quatrocentos mil não regressaram em 1945. Mas a Europa já esqueceu esses tempos sombrios em que, sitiada por uma máquina de guerra desumana e brutal, olhava para essa estátua -tamanho pequeno, tosca de formas, inexpressiva como objeto artístico- e esperava que uma tocha de liberdade a viesse salvar e iluminar. Como, na verdade, ela veio. Duas vezes.
E para quê?
Para nada: em direto da capital do meu país, a ignorância e a bestialidade da multidão mostraram e comprovaram ao mundo como foi inútil o sacrifício. E como o ódio à América não se distingue, hoje, de um ódio à humanidade: essa humanidade que, falando italiano ou alemão, português ou francês, iídiche ou japonês, foi acolhida pelo mais nobre, e também por isso o mais belo, de todos os monumentos possíveis.
Disse que as maneiras são anteriores à moral. Mas, quem não tem maneiras, não tem moral. A memória da Europa não é apenas curta. É curta e ingrata. Nessa ingratidão, existe a marca do seu caráter. Mas existe também o prenúncio do seu triste e solitário futuro.


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