São Paulo, quarta-feira, 11 de julho de 2007

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MARCELO COELHO

Capitão Cueca versus Zuzuquinho


Em cada aventura de Zuzuquinho, uma voz sussurra em segredo: "Obedeça... obedeça..."


VOCÊ CONHECE o Capitão Cueca? Vários volumes com as histórias do novo super-herói já foram publicados pela Cosacnaify. Tende a fazer sucesso com meninos a partir dos quatro ou cinco anos. Enquanto as meninas ainda estão, segundo imagino, na fase das princesas e das bonecas, seus futuros príncipes enveredam por um mundo de curiosidades mais concretas, envolvendo vômitos e privadas, risos e náuseas.
É esse o mundo do Capitão Cueca, criação fartamente ilustrada de Dav Pilkey, tendo como protagonistas os terríveis amigos Jorge e Haroldo. Mas não vou falar mais do Capitão Cueca por enquanto. Descobri, entre meus guardados, um livrinho que gostava de ler na infância. Foi escrito, ao que tudo indica, na década de 60, por Wanda Mycielski, e se chama "Zuzuquinho".
É a história, narrada em primeira pessoa, de um elefante vermelho de pano. Pelas ilustrações, posso ver que se tratava de uma coisa relativamente "moderna" naqueles tempos. Há economia de detalhes, uso de cores básicas e nenhum sentimentalismo na estética geral. Minha memória do livro, antes de voltar a lê-lo, era evidentemente fragmentária e pouco crítica. Lembrava-me de uma ilustração de página inteira, com o pequeno elefante vendo, pela primeira vez, o mar.
Choveu muito na viagem de Zuzuquinho ao litoral. Ei-lo de costas, protegendo-se com um guarda-sol colorido, diante de um mar acinzentado de porto santista.
O boneco de pano e Clara, sua dona, voltam a São Paulo depois de um fim de semana de chuva, e não expressam nenhuma frustração. O tom inteiro do livro, na verdade, é este. Em cada aventura de Zuzuquinho, uma voz melíflua sussurra em segredo: "Obedeça... obedeça..."
A certa altura, Zuzuquinho está muito cansado e quer dormir. Nem pensar, diz Clara. Antes de dormir, "a gente reza, e ponto final. Mesmo cansado! Pode só dizer boa noite para Deus, mas diga logo, pois seu anjinho da guarda elefante não pode voar para o céu de mãos de vazias".
Outro capítulo, e a mãe de Clara leva-a, com seu elefante, ao centro da cidade para comprar fivelas de cabelo. Zuzuquinho ganha a sua e fica tão entusiasmado que pede mais uma de presente. "Mas mamãe disse que eu não pedisse mais, porque uma só fivela bastava para um só elefante. Como mamãe tem sempre razão, não dissemos mais nada, e continuamos olhando as coisas interessantes da cidade."
Bons tempos. Sei que nada disso me chocava. Mesmo hoje, lendo-o para meu filho de cinco anos, percebo que produz um efeito apaziguador, no qual se misturam o subtexto católico de alguns episódios e a mensagem sobre a certeza infalível de que estão imbuídas as "mamães".
Corte para o Capitão Cueca. A mensagem é antiautoritária por excelência. Jorge e Haroldo anarquizam uma festa de escola. Seria realizado um campeonato de beisebol entre o time do colégio deles (os Miolomoles de Horwitz) e os meninos de uma instituição rival (os Insetos Fedorentos de Stubinville).
Nossos protagonistas põem pimenta-do-reino no nariz das "cheerleaders", lambuzam de sabão os instrumentos da banda de música, colocam pó de mico na pomada antiinflamatória dos atletas. O resultado será caótico, e ambos terão de enfrentar o diretor da escola, um monstro de gravata e camisa de mangas curtas, chamado sr. Krupp.
O sr. Krupp não imagina, entretanto, os poderes de Jorge e Haroldo, que irão invocar rapidamente a intervenção do Capitão Cueca; este já se havia notabilizado por transformar a comida nojenta do colégio numa espécie de monstro suicida, que morre ao mergulhar na privada infecta do banheiro.
Aparentemente, estamos diante de mundos incompatíveis. A geração de Zuzuquinho enfrenta, sem glória, a do Capitão Cueca. Em tese, a obediência e a passividade cedem à rebeldia criativa e feliz.
Prefiro pensar em dois livros que cuidam de adaptar as crianças ao que se espera delas.
No primeiro caso, o ideal era um adulto católico, austero, pronto a aceitar as infelicidades que lhe reservasse a vida de advogado ou engenheiro. No segundo caso, o ideal é uma criança adulta, sem limites diante das ofertas de um shopping center, de um plano de celular ou de um programa de emagrecimento pela internet.
Nos dois casos, aposta-se em fragilizar o sujeito; sob a aparência da rebeldia, ou da submissão, dá no mesmo. Talvez não: os pais, frágeis eles mesmos, é que devem responder.

coelhofsp@uol.com.br


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