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O pai de Borges
Em artigo escrito especialmente para a Folha, o autor argentino Alan Pauls conta como é o romance do pouco conhecido Jorge Guillermo Borges, pai de um dos mais importantes nomes da literatura, reeditado agora em Buenos Aires
Arquivo "Diário Popular"
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O escritor argentino Jorge Luis Borges
ALAN PAULS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Como todo mundo, Jorge Luis Borges (1899-1986) teve um pai e
uma mãe. Dos dois, entretanto,
apenas um -a mãe- ocupa um
lugar na mitologia borgeana.
Descendente de espanhóis e
militares, Leonor Acevedo de
Borges foi uma mãe de tomar
em armas, afiada e despótica.
Vigiou a carreira literária de
seu filho com rigor higienista,
um pouco como os pais dos
precoces prodígios dos esportes ou da televisão hoje moldam as trajetórias de seus rebentos. Proibiu Borges de ler
"Martín Fierro" ("um livro que
só é apropriado para sem-vergonhas"), promoveu a carreira
dele "silenciosa e eficientemente", afugentou namoradas
ameaçadoras, foi sua secretária, sua leitora em voz alta
(quando Borges ficou cego), sua
companheira de viagem.
E, basicamente, foi longeva.
Viveu quase cem anos, o que a
permitiu chegar do escuro século 19, no qual nasceu, até
meados dos anos 70 do século
20, a aurora de uma civilização
midiática que contribuiu para
celebrizá-la.
O apagado Jorge Guillermo
Borges não teve a mesma sorte.
Morreu em 1938, quando seu
filho nem sequer intuía a fama
que o aguardava.
Advogado, anarquista com
veleidades de filósofo e professor de psicologia, Borges, pai,
fez por seu filho muito mais do
que a posteridade sensacionalista se dispõe a reconhecer, ela
que, no fundo, o reduziu a uma
anedota lasciva: a prostituta
que ele contratou em Genebra
para que seu filho, então no final da adolescência, se iniciasse
nos ardores do sexo.
Legado
O mais importante que Borges, pai, deu a seu filho, deu já
morto, sob a forma pudorosa
mas influente do legado. Legou
a seu filho sua biblioteca ("o feito capital de minha vida"), a
amizade magistral de Macedônio Fernández, dois males inexoráveis (a timidez e a cegueira) e um mandato difícil de resistir: o de escrever.
Isso porque, além de plagiar
William James nas aulas de psicologia que dava na Escola Normal de Línguas Vivas, Jorge
Guillermo Borges era escritor,
e do tipo mais perigoso: um escritor fracassado. Tinha escrito
poemas, textos, exercícios de
prosa que mantinha em segredo, a meio caminho entre o
hobby e o fetichismo, e que só
se atreveu a mostrar a seu filho
quando ganharam forma em
um gênero dotado de autoridade: um romance.
Borges, pai, publicou "El
Caudillo" em 1921, quando seu
filho tinha pouco mais de 20
anos, era vanguardista e só tinha dado a conhecer um punhado de versos de incendiado
espírito bolchevique. O romance -"interceptado" por algumas metáforas audazes que
Borges, filho, conseguiu incorporar a ele- passou despercebido, mas funcionou como elo
crucial na cadeia de transmissão entre pai e filho.
Até o final de sua vida, o autor
de "Ficções" confessava que
um de seus projetos mais caros,
que nunca realizou, era "revisar
e talvez reescrever o romance
de meu pai, "El Caudillo", como
ele me pediu há anos".
Talvez nessa reescritura se
encontrasse a única possibilidade de assistir a um milagre
que a obra de Borges sempre
nos negou: o milagre de um
Borges romancista. Uma visão
enganosa desse milagre é a que
as livrarias de Buenos Aires
vêm oferecendo desde alguns
meses: a reedição, a cargo de
uma pequena editora de vanguarda da cidade, do romance
de Borges, pai, até agora impossível de ser encontrado.
Exercício narrativo
"El Caudillo" é um exercício
narrativo moldado pelo século
19: um livro de ambiente rural,
entorpecido por meses de sesta
e tédio e açoitado repentinamente, em uma única noite fatídica, por um temporal que se
abate sobre o campo argentino
e centrifuga tudo: vacas, pontes, política, paixões amorosas.
No coração do romance há
um amor não correspondido,
equivocado e culpado, de um
francês sensível, Dubois, e uma
moça que é o cúmulo do recato,
Marisabel, filha de Andrés Tavares, o cacique territorial que
dá título ao livro, domina todo o
cenário político que lhe serve
de pano de fundo e, com sua
onipotência e brutalidade, feminiza todos os homens que
o rodeiam.
É um romance instável, descompensado, que se deixa seduzir por lânguidos impulsos
descritivos e então, como se
despertasse de um sonho, volta
a si, amarra dois ou três fios que
estavam pendurados soltos e
mergulha de cabeça num labirinto de peripécias. É também
nessas desproporções internas
que se encontra sua beleza estranha e escura, a perturbada
contracapa da poética de nitidez e controle que Borges, filho,
sempre defendeu.
É difícil imaginar o que teria
feito o autor de "O Aleph" se tivesse se decidido a corrigir o romance de seu pai. É mais fácil
ler os rastros que o delatam. Este, por exemplo: "Se os elementos que formam o mundo são os
mesmos e são contados, o acaso, o Deus ou os deuses que os
manipulam teriam, no longo
prazo, que combiná-los da
mesma maneira".
Importa pouco saber de qual
dos dois é essa apologia da repetição. Muito mais interessante, singular e comovente é
detectar em um livro antigo e
esquecido os rastros que um
pai e um filho deixaram ao cruzar-se não na vida, onde pouco
os uniu, mas na literatura, à
qual ambos deveram tudo.
ALAN PAULS , 50, é escritor argentino, autor de
"O Passado", entre outros.
Tradução de CLARA ALLAIN
EL CAUDILLO
Autor: Jorge Guillermo Borges
Editora: Mansalva (argentina)
Quanto: 40 pesos (cerca de R$ 21, 128
págs.; para mais informações,
www.mansalva.com.ar)
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