São Paulo, sábado, 11 de julho de 1998

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LIVRO - LANÇAMENTOS
Mirisola busca tirar literatura da apatia

Moacyr Lopes Júnior/Folha Imagem
Marcelo Mirisola, autor de "Fátima Fez os Pés para Mostrar na Choperia", lançado pela Estação Liberdade


MARCELO RUBENS PAIVA
especial para a Folha


Quando tudo parece estar perdido, e o emblema da pseudo-ajuda se fixa no peito do mercado editorial, surge um novo escritor para tirar da apatia a literatura brasileira de ficção.
Os créditos, desta vez, se devem a Marcelo Mirisola, 30 e poucos anos, autor de "Fátima Fez os Pés para Mostrar na Choperia".
Mirisola é uma figura. Não quis falar de sua profissão nem precisar sua idade. Paulistano, mora atualmente em Florianópolis (SC). De sua casa, sem telefone, vê duas praias. "Mas isso não me inspira nada, só atrapalha", diz.
Escreve há tempos. Confessou, depois de eu insistir, que estudou direito em Santa Catarina. Mas não disse se exerce, ou não, a profissão.
Seu livro é de difícil definição. São crônicas, mas são contos, e são cartas e pode ser um só romance. Cartas para mulheres, amadas, platônicas.
O mote é sempre o mesmo rapaz, com seu passado, seu mundinho. É cínico, um contraventor. Nenhum clichê resiste nem uma metáfora fácil.
Escreve: "Hoje é feriadão e chove pra cacetemente. A cidade está vazia. Eu aqui, escondido. As avenidas de São Paulo Não São Literárias".
"Choramos, você na sala Aleijadinho, eu na Mário de Andrade, na seção das dez. Como mar de filme -longe, branco-e-preto-e-apaixonados."
"Sinto falta do amor de mãe, do seu amor. Na verdade eu acho a nossa afinidade coisa de enrustidos. Que a minha crueldade é mais uma bobagem."
"Eu não sou um menino ruim. O meu sonho sempre foi construir lar, família e bigode."
Seu mundinho é o de um paulistano classe média, que frequenta o cine Belas Artes, que viaja por aí, que assistiu aos filmes de sempre e que se entedia com esse vaivém de informações acotoveladas pelo dito caos contemporâneo.
"Paulo César Pereio era o tipo que fazia a festa. Os anos 70 foram uma merda."
Mirisola reinventa a literatura. Parte do zero. Leia trechos de sua entrevista, aliás, das mais conturbadas.
Em nossa primeira conversa, ele ligou de orelhão, numa estrada, chamada a cobrar; enquanto ele viajava, ia parando e me ligando.

A BIOGRAFIA - "Você precisa, mesmo, saber a minha idade? Diz aí que tenho 30 e poucos anos. Não tenho cacife biográfico. Não sei como cheguei a escrever esse livro. Lógico que sabia escrever. Sou comum. Não tenho erudição, nem sou um marginal. Sou um gordinho. Não sou doido varrido. Sou meio complicado. Essa é minha biografia."

O COMEÇO - "Era um aluno medíocre. Repeti de ano no colégio Objetivo. Você conhece alguém que repetiu de ano nesse colégio? Fui desligado do Exército por incapacidade física e mental. Comecei a escrever em 1989. Não uso computador. Escrevo com uma máquina de escrever. Você conhece alguém que ainda usa máquina de escrever? Meu conto mais antigo é o último do livro ("Posfácio para Walt Whitman Desconhecido"). Mas mexi nele, apurei-o."

O ESTILO - "Levo em consideração a velocidade das palavras. Tenho essa maneira de ajustar as palavras, numa medida correta da velocidade delas. Como "Lolita", de Nabukov, que é composto de pura música."

A PROFISSÃO - "Não tenho profissão. Minha mãe me sustenta. Cheguei a escrever para um pasquim de Belém do Pará. Já fui capitão de um barco turístico aqui, em Santa Catarina. Fiz faculdade em Itajaí (SC). Não vale a pena dizer em que sou formado. Mudei-me em 1990 para Santa Catarina. Não fiz faculdade. Diverti-me um bocado. Está bem, eu digo. Formei-me em Direito. Mas minha vida mudou muito quando, em 93, viajei pelo Nordeste. Fui até Belém."

A REFERÊNCIA - "Guimarães Rosa não é referência para mim, não na mesma proporção que Dalton Trevisan. Só li um livro de Guimarães. Os autores nacionais me influenciam muito pouco. Ressalto Reinaldo Moraes e Raduan Nassar. "Copo de Cólera' (Nassar) é um dos melhores livros que li. Mas referência, para mim, é Henry Miller. Especialmente "Crazy Cock'. Sinto Henry Miller ao meu lado, quando escrevo. Não tiveram coragem de traduzir o título. Seria o quê, "O Pau Enlouquecido'? Gosto muito de Cesare Pavese ("O Diabo nas Colinas'), de Bukovsky, Camus. Gosto de toda a geração beat."

A LEITURA - "Um livro cai na vida da gente por acidente. Amigos indicam, ganha-se no aniversário. Frequento sebos. Mas só em São Paulo. Não tem disso aqui, em Santa Catarina. Adorei "O Ventre', do Cony. Nunca li James Joyce. Tentei ler "Dublinenses', mas não consegui passar da segunda página."

O GÊNERO - "É difícil definir o que faço. Não é conto nem crônica. É quase uma fotografia meio deslocada. Nem sei se falo de mim, apesar de só saber escrever na primeira pessoa. Na escola, não aprendi nada. Existe uma autobiografia no que escrevo. Sou eu, mas não sou tudo. Não tem como esconder. Sou todo misturado. Na primeira pessoa, não pode se esconder, se omitir. Dói mais. Precisa ir ao extremo de si mesmo. Dói até o osso."

SEM HISTÓRIA - "Historinha com personagem encheu o saco. Ler é para cair na vida. Quando li os beats, senti que eu não existia. Eles lá, e eu na bundação em São Paulo. Escrevo cartas, para várias mulheres. É uma vingança contra elas. Não é exorcismo. É sacanagem, mesmo. Não acredito que algo vai te exorcizar. Se já aconteceu, nunca vai exorcizar."

AS CARTAS - "Coitadas. Elas, as que têm de receber minhas cartas. Deixa pra lá. Não quero falar disso (risos). Eu falo. Mando as cartas, sim, para a mulherada que conheci pela vida. O prejuízo nunca foi meu, mas de quem não as leu. Mando cartas, como uma tentativa de cantada literária. Se dá certo? Claro que não. Imagine receber uma carta dessas?"

AS EDITORAS - "As editoras sempre recusaram meu livro. Tive cinco recusas da Companhia das Letras. O problema era deles, não meu. Não querem, azar deles. Escrevo e estou satisfeito. Diziam que estavam com a agenda cheia, ou que o livro não era da linha editorial deles. Em 93, mandei o livro para o Marcelo Coelho, um crítico criterioso, severo. Esperava que ele acabasse comigo, para eu desistir da literatura. Estava me fazendo mal ser escritor e ficar me justificando. Mas ele me respondeu, dizendo para continuar."

A PALAVRA - "Minha literatura é de alguém que não sabe escrever como os outros. Escrevo como sei e arrumo um jeito do texto dar liga, samba. Invento coisas, como alcachofra da terra, que não existe. Invento vegetais. A palavra tem uma largueza horizontal. Forço a eloquência do texto. Não faço experimento com palavras, não tenho saco para inventar palavras, prefiro ajeitá-las."

O MÍSTICO - "Já escrevi um romance e acabei destruindo-o. A melhor coisa é destruir um romance. Sou muito místico, mas não sou bobo. Destruí porque era ruim. Não faço crônica nem conto. Faço literatura."

A MORADA - "Moro na praia do Santinho, onde tem pouco morador e muito cachorro. Vejo duas praias da minha casa. Isso não inspira nada. Não é porque moro no lugar mais bonito do mundo que sou inspirado."


Livro: Fátima Fez os Pés para Mostrar na Choperia
Autor: Marcelo Mirisola
Lançamento: Estação Liberdade
Quanto: R$ 16 (142 págs.)



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