São Paulo, sábado, 11 de agosto de 2001

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Um conto por uma vida


Livro de Natalie Zemon Davis revê cartas enviadas por condenados à morte ao rei em busca de perdão, no século 16 francês


SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA

A literatura, quem diria, já afastou muita gente do cadafalso.
Na França do século 16, o último recurso legal para que um condenado à forca ou à decapitação se livrasse da pena era redigir uma carta ao rei pedindo clemência.
Nesse texto, ele deveria dizer que agira em legítima defesa ou movido por uma "grande fúria", justificada pela traição de alguém, e que possuía uma boa reputação. Se a sua carta convencesse, ele poderia obter o perdão real.
A maneira como esses textos passaram a ser elaborados cada vez com maior cuidado e estilo, incrementando o uso do suspense e descrevendo minuciosamente os ambientes dos crimes, é o tema de "Histórias de Perdão e Seus Narradores na França do Século 16", da historiadora norte-americana Natalie Zemon Davis.
O livro, lançado em inglês em 1987 e que chega agora ao Brasil, analisa as cartas de remissão de duas maneiras: como gênero literário e como documento histórico sobre o cotidiano da época.

Ficção
Em entrevista à Folha, Zemon Davis disse que hesitou antes de colocar a palavra "ficção" no título em inglês de sua obra ("Fiction in the Archives"), mas que o fez porque acredita que as cartas de perdão atingiram "uma riqueza narrativa imensa e se utilizaram de elementos fictícios para tornar as histórias dignas de clemência, ainda que, por outro lado, os fatos narrados sejam verdadeiros".
A historiadora compara as cartas com os romances renascentistas e vê um parentesco claro. "Em ambos, os fatos são apresentados como acontecimentos recentes, há a preocupação com a verossimilhança -em contraste com o romance medieval, que era mais fantasioso-, uma preocupação com o tom de mistério e a mistura do riso e do horror", diz (leia ao lado resumos das cartas).
Tamanha elaboração não provinha apenas da imaginação dos condenados, que na maioria das vezes vinham das classes menos favorecidas. Para fazer uma carta, era necessário pagar para que alguém a redigisse e levá-la a notários reais. Estes realizavam novos questionários e acrescentavam detalhes à narrativa.
Os funcionários do rei tinham ordens de tornar as histórias atraentes, para que o monarca e a corte também se deleitassem durante a sua leitura. Era comum que se fizessem circular entre os funcionários reais manuais de estilo e clássicos da literatura para que se inspirassem na redação.

Cotidiano
Ao analisar as cartas como documento histórico sobre o dia-a-dia da população, Zemon Davis considera-as como uma das melhores fontes de narrativa ininterrupta vindas das classes menos favorecidas. "Além disso, as histórias revelam conceitos de honra, justiça e perdão que eram comuns aos homens simples, aos funcionários do rei, aos membros da corte e ao próprio rei, uma vez que a narrativa dos fatos atravessava as classes."
Na maioria das vezes, os condenados à morte haviam sido culpados por homicídio, mas também há casos de falso testemunho, roubos e defloração de virgens. O livro traz um anexo com a íntegra de sete cartas, em francês, com ortografia do século 16, e sua respectiva tradução para o português. Os sete casos relatados são de pedidos que receberam o perdão real. Outro anexo mostra como alguns casos não aceitos tinham suas penas abrandadas.



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