São Paulo, sábado, 11 de agosto de 2001

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"O CANDOMBLÉ DA BAHIA"

O livro do francês Roger Bastide, originalmente de 1958, é reeditado pela Cia. das Letras

O professor xangô baixa de novo por aqui

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Talqualmente no auto bumba-meu-boi, medra ressurreição no candomblé, de modo que o grande cientista estudioso do candomblé, Roger Bastide, vai cada dia se libertando da sua própria morte ocorrida em 1974 na França. A reedição deste livro, originalmente publicado em 1958, é a prova de que o professor xangô está vivo. Saravando por aí.
Sem querer tocar no fogaréu das vaidades bonecais, eu diria que, em termos de autognose do Brasil e seu povo, Roger Bastide é, disparado, na sociologia e antropologia, a melhor cabeça que já lecionou na USP. Ele dá, em estilo e pensamento, de mil a zero em Lévi-Strauss e em todos os outros.
Um intelectual francês do primeiro time influenciado pelo surrealismo, pela psicanálise e pelo marxismo que veio para o Brasil em 1938 durante o Estado Novo getuliano e aqui transviveu a África numa "revolução psíquica" única, como bem registrou Florestan Fernandes, tornando-se aqui um filho de santo, tendo a ousadia desbundada de mexer e questionar, em função dos trópicos úmidos, o aparato conceitual das ciências humanas.
O fato é que ele não ficou mentalmente confinado à tríade de Durkheim, Weber e Marx. É por isso que em seu belíssimo estudo sobre o candomblé defende a tese de que é aspecto místico que determina o social, e não o contrário.
O lúcido e malucão Roger Bastide viu no candomblé, miniatura mística da África cravada no recôncavo da Bahia, a realidade material como reflexo da esfera mística. E mais: torna-se impossível a apreensão do que aí seja sociológico sem a presença do religioso.
O inegável mérito de Bastide, dialogando com o médico Nina Rodrigues, o pai da psiquiatria brasileira, foi despatologizar o transe e a possessão como fenômenos histéricos. Mas o professor xangô não generalizou o candomblé como realidade sociomística para todo o Brasil, abriu as portas para a abordagem estética e polissêmica do transe.
Os filósofos profissionais ficam horrorizados com a formulação bastidiana de que há filosofia no candomblé. Talvez decorra da expressiva linguagem do candomblé e da sua comida, o motivo pelo qual Roger Bastide conseguiu a proeza, sendo francês vocacionado portanto ao colonialismo ou à função de missionário, de descolonizar-se psiquicamente mais do que seus coleguinhas brasileiros.
O mestre deixou mais discípulas mulheres do que discípulos homens, como é o caso das ilustres professoras Maria Isaura Pereira de Queiróz e Gilda Mello e Souza. Ele escreveu 17 livros sobre o Brasil e deu importância decisiva à oralidade. A conversa aparece como fonte de inteligência popular. Para o negro brasileiro, a palavra falada é técnica de expressão e pensamento.
Em sua travessia da descolonização psíquica, Roger Bastide se empenhou em conceder ao transe uma dimensão positiva, podendo ser a vitamina dos fracos e dos espoliados, e não apenas o ópio da patuléia assim como ele não demonizou Exu. Há um Exu bom tal qual um diabo bom. Heráclito do candomblé, Exu encarna o princípio da dialética que estabelece a interconexão das coisas do céu e da terrra. Nada se faz sem Exu. Para o bem ou para o mal.
Sinceramente não entendi, nesta reedição de "O Candomblé da Bahia", a razão de ser sociológica do comentário do presidente FHC. Apenas por ter sido aluno de Roger Bastide? Ora, Roger Bastide não queria, ao contrário do príncipe da moeda, que o Brasil fosse um país bobão do FMI sem autonomia nacional e sem originalidade cultural.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor, entre outros, de "O Príncipe da Moeda" (ed. Espaço e Tempo)

O Candomblé da Bahia     
Autor: Roger Bastide
Editora: Cia. das Letras
Quanto: R$ 37 (363 págs.)



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