São Paulo, quarta-feira, 11 de agosto de 2004

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ILUSTRADA

Ministro reforça proposta de regulação e diz que "monopólios e oligopólios são naturalmente combatidos"

Gil defende diálogo sobre o audiovisual

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Sob bombardeio de críticas à divulgação de seu projeto de lei para a criação de uma Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual, o ministro da Cultura, Gilberto Gil, anda medindo as palavras.
"Dominar é uma palavra excessiva", diz, buscando outra, para expressar a extensão das habilidades do músico Marcus Suzano na manipulação de ritmos eletrônicos e acústicos. Suzano é um de seus parceiros na concepção do novo show "Eletracústico", que Gil apresenta de sexta a domingo, em São Paulo, e deve virar o primeiro disco do ministro-artista.
A seguir, os "dois" -artista e ministro- discorrem em enfáticas palavras sobre os vários campos de batalha em que hoje habitam.
 

Folha - Como acha tempo para criar, ensaiar e fazer novo show?
Gilberto Gil -
Os ensaios fiz em março e abril, em finais de semana, no Rio. É algo simples, com quatro músicos, bem reduzido em relação a bandas bem maiores com as quais venho trabalhando. Tem uma dimensão sonora muito moderada, modesta. A proposta era trazer elementos da música eletrônica, me ocorreu então chamar o trabalho de "Eletracústico", pois acho legítimo que o setor popular possa se apropriar de nomenclaturas eruditas.

Folha - O público estranhará um Gil mais eletrônico?
Gil -
A dosagem é suportável para uma expectativa conservadora. Não chega a cometer violências contra o modo clássico de apresentação dos meus repertórios. A concepção não dá impressão de radicalidade pendente a um lado diferente daquele em que estou.

Folha - O projeto de lei do ministro é "suportável para uma expectativa conservadora"? Nessa esfera, o sr. está sob bombardeio.
Gil -
Mas não de toda a expectativa conservadora, só de parte dela. Houve setores que disseram que a proposta é inaceitável, toda ela. Outros, não, disseram que há correções e ajustes a serem feitos, textos que precisam ser mais bem escritos para contemplar exatamente o princípio defendido. Acham que há propostas que devam ser retiradas, mas defendem o geral, a regulação como algo necessário.

Folha - Um de seus pólos opositores é Cacá Diegues, cineasta brasileiro conhecido por representar na tela a MPB e o negro.
Gil -
Não sei. Ele não me disse isso. Ao contrário, disse: "Estou totalmente solidário com você". O que ele publica no jornal "O Globo" é o que ele publica no jornal "O Globo". Ele não me disse que é um opositor nem acho que seja.

Folha - É um projeto radical?
Gil -
Radical em que sentido? É uma tentativa de interpretação dos desejos e necessidades do conjunto do audiovisual no Brasil, das relações entre o produto estrangeiro e o produto brasileiro. Trata-se de proteger o produto brasileiro e de lhe dar condições de equilíbrio e competitividade, ou não. O documento busca regular um setor que demanda cada vez mais regulação. Segue uma tendência nacional e internacional da economia, de dizer que é importante que os governos ofereçam à sociedade marcos regulatórios. Condenar a iniciativa de regulação me parece um pouco na contramão da história.

Folha - A necessidade citada no projeto de combater monopólio e oligopólios na comunicação lhe parece radical ao interferir no território das comunicações?
Gil -
No capitalismo moderno, tenho impressão de que oligopólios e monopólios são naturalmente combatidos. A livre competitividade e a equalização das oportunidades para o mundo produtivo são coisas desejáveis.

Folha - A Globo é um opositor?
Gil -
A Globo quer ser monopolista e oligopolista? Se quer, isso é com eles, não comigo. O MinC não trabalha com esse pressuposto, não pode. Trabalha com um pressuposto de que ninguém deve ser monopolista e oligopolista.

Folha - O projeto é essencialmente petista, ao mexer em temas como monopólio, ou, como acusam os opositores, ao ser intervencionista, autoritário, dirigista?
Gil -
Não acho. Isso é PT? Onde se combate mais monopólio e oligopólio do que nos EUA, com leis antitruste e com vigilância constante? Onde se regula mais a atividade econômica do que nas grandes catedrais do capitalismo?

Folha - Seria, então, um choque de capitalismo?
Gil
É isso o que a gente quer. Se não conseguimos expressar exatamente isso em algumas formulações, vamos então sentar juntos e formular adequadamente nossa concordância de princípios. Por isso acho um pouquinho precipitado, açodado e desatento condenar integralmente a proposta.

Folha - O projeto é autoritário, dirigista, intervencionista? Por conseqüência, o ministro o é?
Gil -
Isso não faz sentido. O tropicalismo não era isso, minha trajetória nunca foi isso. Que regulação queremos? Não menos que o necessário, não mais que o suficiente. Quem tem que determinar o necessário e o suficiente é a sociedade mais o governo. O papel do governo é buscar a convergência com um marco regulatório que dê conta de todas essas colocações de interesse.

Folha - Como se sente ao ser tachado de autoritário?
Gil -
Não sinto nada. Absolutamente nada. Sinto que não sou, que não estou sendo. Preciso fazer convergir os interesses, criar regras que protejam a todos, que dêem espaço a todos. O que tenho pedido é que os queixosos explicitem suas queixas. Que digam o que chamam de autoritário, senão, vira jargão político. Jargões qualquer um pode usar, mas venham explicar, dizer por que é dirigista, stalinista. É isso que precisa ser feito agora, não só jogar uma pecha no ar e dizer: se colar, colou. Isso não é sério.

Folha - Para o sr., a reação da Globo ao projeto está nas regras do jogo? Ou é uma atitude autoritária?
Gil -
Não sei. Acho que não responde a uma visão ampla, me parece não contemplar nem a própria inserção daquele grupo econômico na discussão do projeto. Ela, de certa forma, bloqueia o diálogo e o processo de discussão. É como se a Globo tivesse dito: "Essa proposta não discutimos". Ao contrário, tem que discutir. Nós fomos lá, tudo isso tem sido posto na mesa o tempo todo. Assim como a Globo disse que há aparências de intervencionismo, -que não há-, poderíamos dizer que há uma intenção de sustar o diálogo, uma rejeição absoluta por parte da Globo (ri). Nosso pressuposto é de que a Globo vai, junto com todos nós, trabalhar dentro das regras da convivência democrática, do diálogo, do aperfeiçoamento das instituições.
Se equalizar tudo isso, provavelmente aqui ou ali interesses serão minimamente contrariados. A indisposição para a mínima contrariedade é antidemocrática. Quando tenho de acordar cedo para trabalhar, podendo, numa dimensão hedonista, ficar na cama até 11h e contemplar a preguiça, é a regulação que me contraria. Faço isso, todos fazemos uma regulação natural nas nossas vidas, criando o espaço ético para o outro. É o espaço do outro que vem ocupar parte do meu e vice-versa.

Folha - O ministro defende o software livre, o artista estréia show patrocinado pela Microsoft. Isso é contraditório?
Gil -
Não vejo incompatibilidade nenhuma (ri). Um está de um lado, o outro, do outro. A Microsoft faz software proprietário, vai ser vendido. O software livre é o software livre. Um está interessado em vender. O outro, interessado em dar. Não vejo problema. Acho que podem conviver, acho que devem. Quem quer dar de graça não pode tirar liberdade de quem quer vender. E quem quer vender não pode tirar liberdade de quem quer dar de graça.

Folha - Quem vende não está gostando do projeto de lei?
Gil -
Ah, bom, aí é problema de quem vende, ora (ri). Não é nosso. Por que é que quem vende tem que achar que quem não vende não tem direito de não vender? O que é que dá direito a quem vende de achar que todo mundo tem que vender? Não vejo. Isso é autoritarismo. É isso.

Folha - Caetano Veloso já disse que Gilberto Gil é o Lula do Lula. O sr. hoje está à esquerda de Lula?
Gil -
Parece cada vez mais que ele tem razão. O governo Lula, todo ele, está à esquerda e à direita do Lula, o tempo todo, ele inclusive.

Folha - A prisão recente de Mano Brown, que estava com um amigo que portava maconha, faz lembrar episódio parecido com Gilberto Gil em 1976. O que o artista e o que o ministro pensam desse episódio?
Gil -
Ainda é anacronismo, né? Ainda estamos lidando com essa questão, já podia não ser assim. Foi em nome de um poder conferido pela lei, mas ainda anacrônico. Essas coisas já podiam estar no campo da regulação automática, feita pelos cidadãos, pelas regras naturais da sociedade, e não mais pela rígida cristalização da criminalização. Ainda não é assim, vamos esperar que seja no futuro. Nós trabalhamos para isso.

Folha - Responderam o ministro e o artista como um só?
Gil -
Os dois (ri).


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