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Desapareceu a perspectiva de um progresso que torne o país decente
Livro reúne intelec tualida de brasilei ra para celebrar a obra de Roberto Schwa rz;
em entrevi sta, crítico aponta diferen ças nas transgr essões cometi das por ricos ou pobres
Leonardo Wen/Folha Imagem
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O crítico Roberto Schwarz em sua residência, em São Paulo |
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DA ILUSTRADA
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
O crítico e ensaísta Roberto
Schwarz será celebrado e sua
obra servirá de ponto de partida para ensaios sobre a realidade social e cultural brasileira no
livro "Um Crítico na Periferia
do Capitalismo", que a Companhia das Letras prevê lançar no
próximo mês.
Nascido em 1938 na Áustria,
Schwarz emigrou para o Brasil,
trazido pelos pais, no ano seguinte. Intelectual de formação
marxista, tornou-se um dos
principais intérpretes do país
ao escrever sobre obras literárias, teatro e música sem aceitar, no dizer do decano Antonio
Candido, "cortar os vínculos
entre a palavra e o mundo".
Na entrevista a seguir, feita
por escrito (ele selecionou algumas perguntas das que lhe
foram propostas), o autor de
célebres estudos sobre Machado de Assis e as relações entre
liberalismo e escravismo no
Brasil afirma que a luta de classes foi substituída no país por
uma "desigualdade social degradada", em que pobres e ricos
viraram "lúmpen". E diz que
desapareceu a perspectiva de
progresso "que tornasse o Brasil um país decente".
Para o crítico, a transgressão
às normas, ou a facilidade com
que a elite do país transita dentro e fora delas -sempre para
seu maior ganho-, é uma marca distintiva da sociabilidade
brasileira. Na entrevista, ele diz
ver uma diferença se essa
transgressão é cometida por ricos ou por pobres.
"Um Crítico na Periferia do
Capitalismo - Reflexões sobre a
Obra de Roberto Schwarz" foi
organizado pelo historiador
Milton Ohata e pela professora
do Departamento de Letras da
USP Maria Elisa Cevasco.
O volume trará ensaios e depoimentos, entre outros, do
crítico Antonio Candido, dos
sociólogos Fernando Henrique
Cardoso e Francisco de Oliveira, do filósofo José Arthur
Giannotti, do historiador Fernando Novais, dos críticos Rodrigo Naves e Ismail Xavier e
do psicanalista Tales Ab'Sáber.
A seguir, a entrevista.
FOLHA - Na homenagem que lhe
prestou o sociólogo Chico de Oliveira, ele diz que tomou o seu ensaio
"Fim de Século" como espécie de
plataforma de pesquisa para o "Ornitorrinco" -texto em que ele trata
do casamento encalacrado e sem
superação da modernidade e do
atraso brasileiros. No seu ensaio,
aparece um tipo social novo, chamado "sujeito monetário sem dinheiro". O sr. poderia explicar?
ROBERTO SCHWARZ - O "sujeito
monetário sem dinheiro" não é
uma expressão minha, é de Robert Kurz [ensaísta alemão de
esquerda]. Ela designa as massas humanas deixadas ao deus
dará pelas industrializações interrompidas do 3º Mundo.
No período anterior, do desenvolvimentismo, a esperança
de emprego e de integração à
vida moderna havia atraído os
pobres para as cidades, arrancando-os ao enquadramento
rural. Quando o motor desenvolvimentista não teve força
para absorver essas populações, estava criada a figura do
sujeito monetário sem dinheiro: multidões "modernizadas",
quer dizer, cujas vidas passam
obrigatoriamente pelo dinheiro, que entretanto não têm salário, sem falar em cidadania
plena. O "Ornitorrinco" de Chico de Oliveira fez um retrato
atualizado desse bicho que não
é isso nem aquilo e que somos
nós. Uma sociedade que já não
é subdesenvolvida, não porque
se desenvolveu, mas porque
deixou de ser tensionada pelo
salto desenvolvimentista; e que
não é desenvolvida, pois continua aquém da integração social
civilizada.
FOLHA - Esses "sujeitos monetários
sem dinheiro" são os (des)agregados de hoje?
SCHWARZ - De fato, os excluídos
de hoje são consumidores sem
meios para consumir, o que os
obriga a algum grau de ilegalidade. Se não há emprego e tudo
tem preço, como vão fazer? O
paralelo com a categoria dos
"agregados", característicos de
nosso século 19 escravista, é
possível, se forem guardadas as
diferenças. Também eles subsistiam no interior da economia monetária e meio à margem dela.
Ermínia Maricato viu a continuidade entre os dois momentos, ligada ao interesse que
o sistema de poder sempre teve
em manter os pobres na precariedade, pendentes de alguém
com mando. No começo do
processo, em 1850, a Lei de Terras dificultou a pequena propriedade rural, que seria um fator de legalidade civil. E até hoje não houve vontade política
para regularizar a propriedade
em favelas e cortiços, onde a
massa pobre vive imersa na ilegalidade, achacada de inúmeras
maneiras e naturalmente achacando por sua vez.
Como explica Maria Sylvia
de Carvalho Franco, os agregados eram homens livres e pobres vivendo como podiam no
limbo social deixado pela ordem escravista. Se o grosso do
serviço cabia aos escravos, os
demais pobres ficavam sem
meio regular de ganhar o seu
sustento. Nem escravos nem
senhores, eles eram economicamente supérfluos, o que os
levou a desenvolver traços peculiares.
No mundo rural, a sua figura
elementar era o morador, vivendo de favor na terra de um
proprietário, a quem devia gratidão e contraprestações, e de
quem não recebia salário, no
máximo alguns cobres. No
mundo urbano, extensão do rural, essa relação se entrelaçou
com a civilização moderna, diversificando-se notavelmente,
mas conservando o traço básico. Persistiam o paternalismo,
a patronagem, o clientelismo, o
apadrinhamento, o filhotismo,
o personalismo etc. -cuja verdade, no pólo fraco da relação,
eram a dependência pessoal e a
falta de garantias.
Especialmente no Rio de Janeiro, a massa sem ocupação
certa, obrigada a levar a vida ao
acaso dos serviços, dos favores,
das proteções e das gatunagens
criou um modo de ser próprio,
analisado por Antonio Candido
em "Dialética da Malandragem". A apropriação do mundo
moderno dentro das pautas do
clientelismo e da informalidade locais, um processo vasto e
surpreendente, produziu uma
nota "nacional" inconfundível,
explorada em profundidade
por Machado de Assis.
Basta ler o teatro de Martins
Pena ou as "Memórias de um
Sargento de Milícias" para saber que em meados do século
19 o entra-e-sai brasileiro entre
os campos da norma e da infração, entre o modelo europeu e
os desvios locais, já era uma trivialidade conhecida de todos.
Se estou lembrado, há uma
baronesa em Martins Pena que
tem empenhos na alfândega
para levar para casa os melhores escravos apreendidos do
contrabando. Assim, a irregularidade e o salve-se-quem-puder em que vivem os pobres é
um lado da moeda; o outro é a
prerrogativa que têm os ricos
de abusar e transgredir, "legitimada" às vezes pelo exemplo
popular.
Dito isso, a exclusão não é a
mesma em nossos séculos 19 e
21, embora haja em comum a
falta de dinheiro e de direitos.
Num caso, o contexto era a sociedade escravista, que a certa
altura se torna abolicionista e,
decênios depois, desenvolvimentista, aspirando à dignificação do trabalho e à superação
da herança colonial; no outro
caso, é a vitória avassaladora do
capital sobre os movimentos
operários, carregada de conseqüências sociais regressivas,
entre as quais uma certa desmoralização de alto a baixo,
proveniente da nova unilateralidade. Com idas e vindas, abolicionismo e desenvolvimentismo eram ascensionais; ao passo
que o movimento atual, a despeito de dois presidentes originários da esquerda, participa
da vaga mundial de aprofundamento do capitalismo e de sua
destrutividade social.
FOLHA - As relações de que participam esses "sujeitos monetários sem
dinheiro" significam uma superação
da relação perversa do favor?
SCHWARZ - A troca de favores
em si não tem nada de perverso. É uma relação de prestação
e contraprestação em que não
entra o dinheiro. Quando é decente, é das coisas boas da vida.
Ela fica perversa quando é muito desigual, como entre um
proprietário e um desvalido, ou
quando é uma cumplicidade
anti-social entre ricos, para
burlar a lei e levar vantagem.
Quando serve à contravenção
dos pobres também não é bonita, mas não é o mesmo, pois
ajuda os de baixo a contornar a
necessidade e a desigualdade.
O que tornava perversa a relação, no século 19 brasileiro,
era algo mais particular. Como
o essencial do serviço era feito
por escravos, o mercado de trabalho era incipiente, obrigando
os homens pobres a buscar a
proteção de um proprietário
para tocar a vida. O proprietário, por seu lado, ficava à vontade para favorecê-los, como um
senhor personalista, à antiga, a
que é devida gratidão, ou para
desconhecê-los, como um cidadão moderno, que não está
nem aí, ou melhor, que não deve nada a ninguém. Essa assimetria vertiginosa entre as
classes, em que, dependendo
do capricho dos ricos, os pobres
podiam ser favorecidos ou resvalar para o nada, de fato tornava a relação de favor iníqua.
Tratava-se de uma perversão
estrutural, que Machado explorou como ninguém.
Você pergunta se essa relação foi "superada" pelos sujeitos monetários sem dinheiro. É
exagero falar em superação onde o ruim foi substituído pelo
que não é bom. Superação civilizadora teria havido se o paternalismo e as relações de clientela tivessem sido derrotados
pela generalização do trabalho
assalariado, com sindicalização
maciça, conquista de direitos
sociais e renegociação da parte
do trabalho na vida nacional.
Não foi o rumo que a história
tomou. Algo desse tipo talvez
tenha estado na ordem do dia
no começo dos anos 1960.
Quem tem idade lembra da grita da classe média que via secar
o reservatório das empregadas
domésticas. Mesmo com salário menor, as moças tinham orgulho de ser operárias. Preferiam o jugo impessoal na fábrica aos caprichos humilhantes
das patroas.
Como hoje está na moda
achar que 1964 não foi nada,
não custa lembrar que Lincoln
Gordon, o embaixador americano na época, reconheceu que
o golpe militar brasileiro foi um
momento importante da Guerra Fria. Refletindo sobre o golpe à luz da irrisão tropicalista,
que veio na sua esteira, um
"brasilianista" me observou
que nossa virada à direita teve
papel precursor e deu ensejo à
ordem pós-moderna, o que
achei inesperado e sugestivo.
Seja como for, estavam se
instalando as condições de despolitização e ulterior administração da pobreza. Para não
perder o pé, é preciso reconhecer que esta -a administração
da pobreza- é melhor do que
nada e que a miséria na favela é
preferível à miséria rural.
É o gênero de comparação
entre patamares de desgraça
que esvazia a idéia de progresso, mas que ainda assim é indispensável. Reconhecida pois
uma espécie de progresso nesses decênios, digamos que o
que desapareceu foi a perspectiva do progresso orientado e
acelerado, fruto do conflito e da
consciência coletiva, que tornasse o Brasil um país decente
em tempos de nossa vida. Mal
ou bem, era essa a aspiração da
esquerda.
FOLHA - Como se passou de uma
forma social -a do favor- a essa
outra, nova? Qual o significado dessa mudança?
SCHWARZ - Quando escrevia os
seus extraordinários artigos
abolicionistas, Joaquim Nabuco tinha claro o laço entre escravidão, latifúndio e degradações ligadas à dependência pessoal, no campo e na cidade. Nas
palavras incisivas do próprio
Nabuco, era um quadro que diminuía o valor de nosso título
de cidadão. Desde então, até a
crise do nacional-desenvolvimentismo, nos anos 1970, a
transformação dos excluídos
em assalariados rurais, operários e cidadãos fez parte do
ideário progressista. Sobretudo
através da industrialização e da
reforma agrária, que prometiam reformar o país, acabando
com a liga de mandonismo, miséria, clientelismo sub-cidadania etc., que nos separavam da
modernidade. Com a globalização estas expectativas passaram por uma redefinição drástica. Para desconcerto geral da
esquerda, a modernização agora se tornava excludente e reiterava a marginalização e a desagregação social em grande escala. Para quem não sabia, o
progresso do capital e o progresso da sociedade podiam
não coincidir.
A superação da marginalidade pelo trabalho ordeiro é um
tópico antigo. Todos conhecem
o samba getulista da conversão
do malandro: "Quem trabalha é
que tem razão / Eu digo e não
tenho medo de errar / O bonde
São Januário / Leva mais um
operário / Sou eu que vou trabalhar". A letra gabava o trabalhador à custa do malandro,
mas os dois lados da alternativa
eram simpáticos. Ora, o testemunho dos artistas recentes
aponta numa direção mais escura. No romance de Paulo
Lins assistimos à substituição
da favela pela neofavela, em
que os traços comparativamente amenos da marginalidade
tradicional são escorraçados
pela violência nova e maciça do
narcotráfico, em contexto de
exclusão com consumismo. Em
"Carioca", o corajoso CD de
Chico Buarque, o cantor empresta a voz, como se fosse um
telão, ao avesso fosco e temível
da Cidade Maravilhosa, que
não convida ao canto. A postura
é ainda mais admirável num artista que tem tanto público a
perder.
FOLHA - No seu ensaio "Cultura e
Política", o sr. fala de idéias que são
desenvolvidas antes de 64, no período democrático, e usadas pela esquerda no período entre o golpe e
68. Seria possível fazer uma analogia entre esse uso e a lógica das
"idéias fora do lugar"?
SCHWARZ - A derrota da esquerda foi tão completa, primeiro pelo golpe militar, depois pelas armas e enfim pelo
curso das coisas, que hoje parece extravagante valorizar a sua
contribuição intelectual. Mas
não creio que esta última tenha
sido uma "idéia fora do lugar",
uma fachada caricata, alheia às
necessidades e aos sofrimentos
reais. Há um bom livro à espera
de ser escrito, que sintetize
com isenção a obra por assim
dizer coletiva de Caio Prado Jr.,
Celso Furtado, Antonio Candido, Fernando Henrique Cardoso, Paulo Emilio Salles Gomes,
Fernando Novais e certamente
outros que conheço menos.
Com ponto de fuga socialista,
o conjunto colocou em pé uma
idéia complexa e muito real de
subdesenvolvimento, alcançada a força de independência de
espírito e abertura para a realidade. Saiu a campo contra o
conservadorismo brasileiro, a
esclerose comunista, o peso
ideológico do "establishment"
internacional, com passos
adiante em cada uma dessas
frentes. Não se tratava mais de
identidade nacional como anteriormente, mas de assumir
uma posição particular e estrutural no capitalismo contemporâneo, com impasses que
não são apenas sinais de atraso,
deficiências locais, mas pontos
de crise e limites da ordem
mundial. Foi um alto momento
de inserção e de desprovincianização da vida intelectual brasileira.
Em 1964 uma parte da esquerda se concentrou na crítica
aos compromissos e às ilusões
do Partido Comunista no período anterior, que haviam
conduzido à debacle. Em política, sob influência de Cuba, a radicalização levou à luta armada,
duramente batida. No campo
estético ela se diversificou e teve resultados notáveis, como os
filmes de Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade, as canções de Caetano Veloso e Chico
Buarque, os espetáculos dos
Teatros de Arena e Oficina em
São Paulo, a teorização de Sergio Ferro sobre arquitetura.
Seja como for, estamos longe
da comédia ideológica, do arranjo do liberal-escravismo
clientelista designado nas
"idéias fora do lugar".
FOLHA - Esta nova ordem em que
vivemos produziu narrativas que
dêem conta de suas relações?
SCHWARZ - Por que não colocar
a pergunta ao contrário? Digamos que a nossa narrativa custou a entrar em sintonia com a
nova ordem e a receber as suas
energias.
No seu discurso de posse, em
1995, Fernando Henrique Cardoso sustentou que o Brasil não
era mais um país subdesenvolvido, e sim um país injusto.
Noutras palavras, os impasses
estruturais seriam coisa do
passado e o que viria pela frente
seria uma sociedade mais racional e tranqüila, inserida no
progresso mundial. O otimismo não convenceu todo mundo, mas no geral o debate político e estético seguia morno.
Nesse ambiente, o filme de
Sergio Bianchi "Cronicamente
Inviável" foi um pequeno escândalo que fez renascer a discussão. O desconforto e o interesse despertado indicavam
que a forma artística havia restabelecido o contato com a realidade.
Em lugar de luta de classes, o
filme mostrava a desigualdade
social degradada, em que os
dois pólos haviam virado lúmpen e se mereciam mutuamente -uma posição inédita na cultura brasileira, que sempre
confiara seja na pureza popular, seja na missão tutelar das
elites. De um lado, trabalhadores desmoralizados pelo desemprego e rendidos ao imaginário burguês; de outro, uma
burguesia ressentida e lamentável, invejosa de suas congêneres do Primeiro Mundo, queixosa de não morar lá, além de
amargada com a insegurança
local, que azedou os seus privilégios.
Em suma, Bianchi recolheu
os resultados não-programados da abertura econômica de
Collor, com a qual se iniciara o
período contemporâneo do
Brasil. As classes sociais haviam sido expostas à competição global: os trabalhadores
perdiam as condições de luta,
ao passo que o projeto nacional
deixava der ser uma carta no jogo da burguesia. Com variações, uma constelação desse tipo rebaixado conferiu atualidade e gume a uma batelada de filmes e de espetáculos off-teatrão do período.
Com grande sucesso mas
sem causar muita discussão, esse ângulo politicamente incorreto havia sido antecipado por
Chico Buarque, em "Estorvo".
Ele vem sendo explorado com
maestria artística notável no
minimalismo poético de Francisco Alvim.
FOLHA - A noção de idéias fora do
lugar pressupõe uma perfeita adequação entre estrutura e superestrutura que talvez só tenha ocorrido
nos textos de Marx (e em alguns
pontos da Europa). O resto do mundo não estaria então fora do lugar?
Esse ponto de vista não reflete uma
visão eurocêntrica marxista, a ver o
Brasil como um defeito?
SCHWARZ - É como você diz, o
resto do mundo estava fora de
lugar. Em palavras de Gilberto
Freyre, o século 19 vivia "sob o
olho do inglês", ou também do
francês. O modelo liberal era
inalcançável para a grande
maioria das demais nações, cujas condições eram outras, mas
era também indescartável, porque representava a tendência
de ponta no sistema internacional. São contradições objetivas. Em "Origens do Totalitarismo" Hannah Arendt menciona o ressentimento contra o
padrão inglês e francês na Europa de Leste e vê nele uma
predisposição para o fascismo.
No século 20 o modelo norte-americano e ultimamente a
fórmula neoliberal funcionaram de maneira análoga, como
paradigmas quase incontornáveis.
Parafraseando Marx, as
idéias da classe dominante na
nação hegemônica do período
tendem a ser dominantes ou
pelo menos presença obrigatória nas nações periféricas.
Quem as adota tais quais é apologista ou deslumbrado. Quem
pensa que as pode desconhecer
coloca-se intelectualmente fora do mundo. Dentro do possível, tudo está em relacionar-se
com elas de maneira judiciosa,
reconhecendo a sua parte de
necessidade, mas sem perder
de vista as realidades e os interesses próprios. Na verdade,
quem foi eurocêntrico e depois
impôs o padrão americano foi o
capitalismo. O marxismo, que é
a sua teoria crítica, acompanha
a voragem concentradora, mas
não adere a ela.
FOLHA - Sua crítica ao tropicalismo
foi realizada "a quente", sob forte
influência de uma visão de esquerda. Censurava no movimento o seu
"esnobismo de massa", sua tendência a fixar a imagem do Brasil como
absurdo, sem apontar para o futuro.
Você faria reparos a essa perspectiva? Como recebeu a leitura que o
próprio Caetano fez do processo em
"Verdade Tropical"?
SCHWARZ - Com sua licença,
vou desfazer alguns mal-entendidos em sua pergunta. Não tenho nada contra o esnobismo,
muito menos contra o esnobismo de massa, que são formas de
insatisfação e de atualização.
Também não censurei a alegoria tropicalista do Brasil absurdo. Pelo contrário, procurei
mostrar o seu fundamento histórico e seu acerto artístico.
Deliberadamente ou não, ela fixava e fazia considerar a experiência da contra-revolução vitoriosa, ou da modernização
conservadora, que em vez de
dissolver o fundo arcaico do
país o reiterava em meio a formas ultramodernas. As alegorias do absurdo-Brasil, com seu
poço de ambigüidades, com seu
vaivém entre a crítica, o comercialismo e a adesão, são o achado e a contribuição do movimento. Ainda assim, em estética, e não só nela, os acertos têm
o seu custo, que é parte do problema. É este o campo explorado pela análise dialética, que
procura desentranhar alguma
verdade do emaranhado artístico. Se não me engano, a pergunta cedeu ao estereótipo do
que seja a crítica de esquerda.
"Verdade Tropical" é uma
obra incomum, que vai ficar. A
sua qualidade é feita, entre vários méritos, de suas fraquezas.
Quem não tenha olho para estas passará batido pelo incômodo e pelo alto grau de contradição do livro. São eles a sua principal força, a sua energia histórica, maior do que os seus méritos literários óbvios. Algo semelhante vale para o próprio
Tropicalismo.
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