|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/ensaio
Densos e irônicos, textos de Flusser entregam automatismos cotidianos
GUSTAVO BERNARDO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser era
fiel à sua máquina de
escrever manual. Recusava escrever nas máquinas elétricas
e, mais tarde, no computador
-embora filosofasse sobre ele.
Ele preferia a velha máquina
pela combinação do silêncio
entre cada tecla que pressionava e o ato físico de retornar o
carro, pontuando os pensamentos para melhor compor o
texto. A resistência das teclas
aumentava a sua responsabilidade sobre o que escrevia.
O gesto de escrever na máquina manual é transparente:
observa-se como a tecla pressionada levanta a alavanca que
imprime a letra escolhida sobre
a folha de papel; observa-se como o rolo gira para permitir a
impressão da linha seguinte.
No computador, porém, as
teclas detonam centenas de
processos matemáticos para fazer surgir na tela uma simples
letra. Não "vemos" esses processos, que formam para nós
uma caixa-preta. Tornamo-nos
funcionários das máquinas, isto é, passamos a funcionar para
elas, e não o contrário.
A máquina de escrever é um
dos objetos preferenciais de reflexão do livro "O Mundo Codificado", que a editora Cosacnaify acaba de lançar em bela
edição high-tech, com capa em
PVC e impressão em serigrafia
transparente. As páginas, pautadas como um caderno escolar, aludem às idéias que nelas
se debatem.
O livro reaproxima os campos da arte e da técnica por
meio de uma filosofia do design
moderno: ainda que sobrecarregado da ideologia do progresso, o design abre espaço para
invenção e ironia. Este espaço,
todavia, é traiçoeiro: ao mesmo
tempo que o design libera-nos
de nossa condição criando
mundos bonitos, esconde-nos
valor e verdade.
Dividido nas seções "Coisas",
"Códigos" e "Construções",
o livro de Flusser é uma excelente amostra do pensamento
desse que o organizador Rafael
Cardoso apresenta como um
dos maiores pensadores do
século 20.
Traduzidos do alemão por
Raquel Abi-Sâmara, seus textos
aparentemente leves, mas densos e profundamente irônicos,
nos convencem "de que toda
cultura é uma trapaça, de que
somos trapaceiros trapaceados, e de que todo envolvimento com a cultura é uma espécie
de auto-engano" (pág. 185).
Rebanhos e pastores
Eles mostram como o processo de mímese que constrói a
nossa cultura supõe uma reação imprevista das coisas:
se desde que inventamos
a alavanca movemos o braço
como se fossem alavancas,
também "desde que criamos
ovelhas nos comportamos como rebanhos e necessitamos de
pastores" (pág. 49).
Assim como pensa a técnica
pela arte, Flusser combina filosofia e ficção numa espécie de
ficção filosófica que nos força a
pensar as coisas sob novas
perspectivas, desalienando-nos dos automatismos cotidianos. Sua filosofia irônica é uma
filosofia da liberdade, mas uma
liberdade trágica que nos reconhece animais políticos por
sermos ao mesmo tempo solitários e incapazes de viver na
solidão: "A comunicação humana é um artifício cuja intenção é nos fazer esquecer a brutal falta de sentido de uma vida
condenada à morte" (pág. 90).
GUSTAVO BERNARDO é professor de teoria da
literatura na UERJ (Universidade Estadual do
Rio de Janeiro) e autor de "A Dúvida de Flusser"
(Globo)
O MUNDO CODIFICADO
Autor: Vilém Flusser
Tradução: Raquel Abi-Sâmara
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 45 (224 págs.)
Avaliação: ótimo
Texto Anterior: Biografias imperiais viram filão editorial Próximo Texto: Crítica/biografia: "Divas Abandonadas" revela lado humano de celebridades Índice
|