São Paulo, sábado, 11 de agosto de 2007

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Crítica/ensaio

Densos e irônicos, textos de Flusser entregam automatismos cotidianos

GUSTAVO BERNARDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser era fiel à sua máquina de escrever manual. Recusava escrever nas máquinas elétricas e, mais tarde, no computador -embora filosofasse sobre ele.
Ele preferia a velha máquina pela combinação do silêncio entre cada tecla que pressionava e o ato físico de retornar o carro, pontuando os pensamentos para melhor compor o texto. A resistência das teclas aumentava a sua responsabilidade sobre o que escrevia.
O gesto de escrever na máquina manual é transparente: observa-se como a tecla pressionada levanta a alavanca que imprime a letra escolhida sobre a folha de papel; observa-se como o rolo gira para permitir a impressão da linha seguinte.
No computador, porém, as teclas detonam centenas de processos matemáticos para fazer surgir na tela uma simples letra. Não "vemos" esses processos, que formam para nós uma caixa-preta. Tornamo-nos funcionários das máquinas, isto é, passamos a funcionar para elas, e não o contrário.
A máquina de escrever é um dos objetos preferenciais de reflexão do livro "O Mundo Codificado", que a editora Cosacnaify acaba de lançar em bela edição high-tech, com capa em PVC e impressão em serigrafia transparente. As páginas, pautadas como um caderno escolar, aludem às idéias que nelas se debatem.
O livro reaproxima os campos da arte e da técnica por meio de uma filosofia do design moderno: ainda que sobrecarregado da ideologia do progresso, o design abre espaço para invenção e ironia. Este espaço, todavia, é traiçoeiro: ao mesmo tempo que o design libera-nos de nossa condição criando mundos bonitos, esconde-nos valor e verdade.
Dividido nas seções "Coisas", "Códigos" e "Construções", o livro de Flusser é uma excelente amostra do pensamento desse que o organizador Rafael Cardoso apresenta como um dos maiores pensadores do século 20.
Traduzidos do alemão por Raquel Abi-Sâmara, seus textos aparentemente leves, mas densos e profundamente irônicos, nos convencem "de que toda cultura é uma trapaça, de que somos trapaceiros trapaceados, e de que todo envolvimento com a cultura é uma espécie de auto-engano" (pág. 185).

Rebanhos e pastores
Eles mostram como o processo de mímese que constrói a nossa cultura supõe uma reação imprevista das coisas: se desde que inventamos a alavanca movemos o braço como se fossem alavancas, também "desde que criamos ovelhas nos comportamos como rebanhos e necessitamos de pastores" (pág. 49).
Assim como pensa a técnica pela arte, Flusser combina filosofia e ficção numa espécie de ficção filosófica que nos força a pensar as coisas sob novas perspectivas, desalienando-nos dos automatismos cotidianos. Sua filosofia irônica é uma filosofia da liberdade, mas uma liberdade trágica que nos reconhece animais políticos por sermos ao mesmo tempo solitários e incapazes de viver na solidão: "A comunicação humana é um artifício cuja intenção é nos fazer esquecer a brutal falta de sentido de uma vida condenada à morte" (pág. 90).


GUSTAVO BERNARDO é professor de teoria da literatura na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e autor de "A Dúvida de Flusser" (Globo)

O MUNDO CODIFICADO
Autor:
Vilém Flusser
Tradução: Raquel Abi-Sâmara
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 45 (224 págs.)
Avaliação: ótimo


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