São Paulo, segunda-feira, 11 de agosto de 2008

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Análise

De matriz brechtiana, grupo reata com prática dos anos 60

SILVIA FERNANDES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A publicação de sete peças da Companhia do Latão permite ao leitor conhecer uma das experiências mais radicais de dramaturgia brasileira empreendidas nas últimas décadas. Resultantes do processo colaborativo de criação que define a escritura do teatro de grupo dos anos 90, os textos reunidos no volume foram criados ou adaptados em sala de ensaio a partir das improvisações dos atores e funcionam como modelo das formas mais recentes de produção de uma dramaturgia cênica coletivizada. A Companhia São Jorge de Variedades, o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, o Teatro da Vertigem e o Grupo XIX de Teatro são outros exemplos dessa prática teatral que revolucionou a cena paulista nos últimos anos.
Mas, sem dúvida, o diferencial do trabalho da companhia é a opção pela pesquisa do teatro épico-dialético, de matriz brechtiana, em que a crítica política das formas de representação é o meio de viabilizar o desmonte dos modos de operação do capitalismo periférico. Talvez por isso a temática das peças seja recorrente, ainda que o objeto varie, como observa a ensaísta Iná Camargo Costa no prefácio esclarecedor. Nesse sentido, a criação de "Visões Siamesas" e "Equívocos Colecionados", em 2004, dá continuidade às reflexões de "O Mercado do Gozo" (2003), "O Auto dos Bons Tratos" (2002) e "A Comédia do Trabalho" (2000), textos prenunciados, de certa forma, pela primeira dramaturgia coletiva do Latão, "O Nome do Sujeito" (1998), estreada dois anos depois da criação do grupo, em 1996, com "Ensaio para Danton", que adaptava o texto de Georg Büchner.

Retomada
Na tematização do movimento operário, do universo da prostituição, da mercantilização das relações, da escravização da mão-de-obra ou da ascensão do capitalismo financeiro, os textos apresentam os destinos individuais imbricados às forças coletivas, e o jogo de transição entre o íntimo e o público exige dos dramaturgos-diretores, Sérgio de Carvalho e Márcio Marciano, um desenho quase coreográfico de apartes, interrupções e alterações de chave estilística.
Ao reatar conexões com a prática teatral dos anos 60, especialmente do Teatro de Arena e do CPC, o Latão reconhece o esgotamento do modelo nacional-popular diante das novas relações de trabalho e da penetração da indústria cultural. E, visando a retomada crítica, é responsável por uma reviravolta nas propostas do teatro político de perfil mais tradicional, em que a "mensagem" revolucionária é a prioridade. Apóia-se especialmente nas reflexões de Walter Benjamin e Theodor Adorno, na teoria do drama moderno de Peter Szondi, nos ensaios iluminados de Anatol Rosenfeld e nas críticas de Fredric Jameson ao pós-modernismo para esclarecer os mecanismos nem sempre ocultos de determinação das relações sociais em circunstâncias históricas específicas.

Regras do Jogo
É visível, na sucessão dos textos, a paulatina radicalização da simbiose entre a pesquisa formal e a reflexão histórica, especialmente quando as articulações do processo social sedimentam-se na estrutura dramatúrgica e expõem, em suas soluções, aquilo que a temática procura explicitar. No sentido próprio do estranhamento brechtiano, é espantoso constatar, desde "O Nome do Sujeito", a inteligência de mecanismos de construção certeiros como o da invisibilidade proposital do aristocrata que espolia e assassina os subalternos, mas permanece como personagem ausente de uma narrativa protagonizada por escravos, artistas, clérigos e comerciantes da cidade de Recife no 2º Império.
As "diversas modalidades de comércio entre os homens" reaparecem em "Mercado do Gozo", que mobiliza três planos ficcionais para criticar as manipulações da imagem na sociedade do espetáculo. A greve geral que paralisou a indústria paulista em 1917, o mundo urbano da prostituição e o filme que associa fábrica e bordel à mesma cadeia produtiva contracenam num jogo cinematográfico de corte e repetição, que expõe os pontos de vista da companhia.
Essa exposição das regras do jogo aparece, com clareza, em todos os textos, especialmente nas cenas que se contradizem internamente, ao contrapor procedimentos de literatura e palco, palavra e imagem, e não é casual que registrem rubricas com indicações cênicas detalhadas. Também não é gratuita a construção fragmentada de "Equívocos Colecionados", inspirado em entrevistas e escritos teóricos do dramaturgo Heiner Müller. Nem a opção pelo tema da migração em "Visões Siamesas", que traduz no deslocamento geográfico as mudanças históricas do país e aproxima a companhia da melhor dramaturgia brasileira contemporânea de Luís Alberto de Abreu, Gero Camilo e Newton Moreno.


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