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ANÁLISE
Cravo Neto transgrediu códigos da fotografia
Artista, que morreu domingo, buscava manifestações cósmicas no cotidiano
EDER CHIODETTO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
"U
M MOMENTO de
beleza é um momento de encontro", escreveu o artista Mario
Cravo Neto, morto no último
domingo em Salvador, aos 62
anos. E a beleza de sua arte, de
fato, se explica em boa parte pela criação de um espaço simbólico de celebração de encontros. Sua fotografia promove de
forma singular a junção entre
realidades visíveis e as fronteiras do ficcional, entre mito, vida e arte. Sua percepção aguçada o levou a perceber, nos gestos cotidianos, manifestações
cósmicas onde se podia entrever a origem do universo. O ancestral embutido no banal.
Esse caráter metafísico de
seu trabalho foi gestado, não há
como negar, pelo ambiente artístico e sincrético de Salvador,
na Bahia, onde nasceu, foi criado, viveu e, por fim, transformou no pano de fundo de sua
obra. "Na Bahia encontra-se o
que a gente tem carinhosamente em comum e não agressivamente o que tem de diferente",
escreveu nos agradecimentos
do livro "Laróyè" (Áries Editora, 2000), sem dúvida, um dos
mais belos, importantes e vigorosos livros de fotografia já editado no Brasil. "Laróyè" é uma
saudação em iorubá para o exu,
entidade controversa adorada
por Cravo Neto.
Além do cenário, havia a família e seu entorno a contribuir. O escultor Mario Cravo
Junior, seu pai, ao saber naquele abril de 1947 que sua mulher
estava em trabalho de parto no
hospital, optou por ficar em casa, de frente para o mar, ouvindo "Prélude à l'Après-midi d'un
Faune", de Claude Debussy.
Depois, levaria seu pequeno
"fauno" para conviver com artistas e intelectuais de sua geração como Jorge Amado, Pierre
Verger, Carybé e Pietro e Lina
Bo Bardi, entre outros tantos.
Trabalhando em paralelo
com a escultura e a fotografia
desde os 17 anos, Mariozinho,
como seria sempre chamado
pelos mais íntimos, aprimorou
seus estudos após morar em
Berlim com o pai e rodar a Europa. Estudou com o fotógrafo
Max Jacob e com o pintor modernista italiano Emilio Vedova (1919-2006). Em 1968, estudou na Arts Students League,
em Nova York.
Num dado momento da carreira, percebeu que seria impossível manter em paralelo as
atividades de escultor e fotógrafo. Optou pela segunda.
"Jorge Amado, assim como outros, gostavam de minhas fotos
e diziam que eu devia me dedicar só a ela", contou.
Um sério acidente de carro
em 1975 o deixou com as duas
pernas quebradas e sobre uma
cama por cerca de um ano, levando-o à fotografia de estúdio.
Iniciou assim as séries em preto e branco "O Fundo Neutro" e
"Meus Personagens", as mais
conhecidas de sua trajetória e
que constam nas mais prestigiadas coleções particulares e
públicas do mundo como a do
MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova York), a do Tokyo
Institute of Polytechnics, a da
Fundação Cartier (Paris), entre
muitas outras.
Arte colecionável
No contexto da fotografia de
arte brasileira, Cravo Neto tem
uma importância fundamental:
foi um dos primeiros a ter sua
obra valorizada pelo mercado
de arte internacional, a introduzir no Brasil a ideia da fotografia como objeto de arte colecionável, a discutir tiragem,
qualidade de cópia etc.
Para além desse aspecto, a
obra de Cravo Neto continuará
a ser uma chave fundamental
para se discutir um tipo de arte
que utiliza elementos mínimos
para expressar a ancestralidade
do homem, seu lugar no universo, a poética que envolve a noção de passado e futuro etc.
Foi assim, por exemplo, que
se deu sua incursão no candomblé. Ao fotografar os ícones
ritualísticos da religião afro-brasileira, Cravo Neto buscava
de forma muito peculiar conectar objetos, pessoas, atmosfera,
símbolos e mitos organizados
em sua beleza escultórica para
celebrar a pulsão de vida da matéria. A morte como parte dessa
pulsão, um ciclo que não cessa.
Com Cravo Neto, a fotografia
transgrediu códigos e ampliou
suas possibilidades de representação. São raros os artistas
que conseguem ampliar o repertório de sua arte dessa maneira. E raros artistas não morrem jamais. Laróyè!
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