São Paulo, sábado, 11 de setembro de 2004

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FERNANDO GABEIRA

O inesgotável encanto de uma vida de menina

"Minha Vida de Menina" foi o vencedor do festival de cinema de Gramado. Alegro-me pelas duas Helenas: Solberg, que realizou o filme, e Morley, que escreveu o livro.
Como entender o encanto de um livro escrito no final do século 19? Qualquer grande explicação vai esbarrar no fato de que Helena Morley era inteligente, viva e talentosa. E isso basta para escrever um livro. Sobretudo se acrescentamos uma outra qualidade: ela trabalhava duro, apesar da idade. Às vezes, não tinha mais do que meia hora para o almoço.
O pai dedicava-se à cata de diamantes; a mãe, para Helena, era a pessoa mais disposta do mundo. A família era um fracasso nos negócios. O único talento era a mineração. A vida dos irmãos era dura. Cortavam lenha antes do café e, às vezes, depois do almoço, a mãe lhes dava uma faca e um pedaço de madeira, ordenando que fizessem palitos, pois era o tipo de trabalho que não perturbava a digestão.
Esse clássico da literatura brasileira talvez não tivesse vida tão longa, se não caísse no campo magnético de uma revisão da história, valorizando o cotidiano, os fatos considerados insignificantes diante da grande aventura coletiva que produz heróis, estátuas e nomes de rua.
Grandes correntes da história aparecem aqui e ali no relato da menina cuja família paterna era inglesa. Sente-se uma relação ainda instável entre senhores e escravos libertos; da mesma maneira, percebe-se o lento declínio no garimpo.
Nada disso importa muito diante da personalidade da menina. Era maravilhosa, embora, para os padrões da época e para alguns articulistas de hoje, passasse por travessa. Seu grande segredo era achar o padre de Diamantina feio. Sofreu com isso. Quase desmaiou quando, na primeira comunhão, queriam que confessasse seus pecados, todos os seus pecados. E as mucamas diziam em casa que um dos piores pecados, sem remissão, era precisamente achar padre feio.
Dois detalhes da vida de Helena Morley, cujo nome verdadeiro era Alice Brandt, explicam, pelo menos para mim, a força de sua personalidade. Um deles é a ligação com a comida. Avaliava as casas dos parentes também pelo que ofereciam às crianças. Na casa do tio Geraldo era tão fino "como um espelho". Quando ganhava biscoitos, tratava de esconder a lata de manteiga para melhorar o sabor do presente. Um ex-escravo que gostava dela reservava as melhores frutas, que ela escondia e ia comendo aos poucos.
Ao anotar os trechos que a mobilizavam para a comida, fui socorrido por um texto de Winnicot, para quem a felicidade do bebê está muito ligada ao alimento, sobretudo porque, sendo esperto, percebe, pelos ruídos familiares, que a comida está chegando e goza antecipadamente o instante.
Mas é na relação com a roupa que a menina vivia com firmeza. A grande decepção foi quando uma tia inglesa lhe deu um vestido azul-marinho para uma festa muito esperada. Estavam todas de cor-de-rosa, ou mesmo de azul-celeste, e ela com aquela "cor de viuva".
Uma de suas aventuras foi vender uma jóia da família, que estava de qualquer forma reservada para ela, para mandar fazer um vestido que se desdobrava em dois. Assim estaria sempre bem vestida e nunca repetiria o modelo.
Interpretações não revelam a riqueza de detalhes do livro nem a sutileza com que ela examinava os adultos com suas meias verdades, o frágil cimento que unia as famílias, sobretudo quando discutiam herança e outras coisas desagradáveis.
O livro é tão rico em detalhes que, após sua primeira publicação, em 1942, chegou-se a pensar se não fora escrito por um adulto. Atribui-se a Guimarães Rosa a seguinte resposta para a dúvida: se foi escrito por um adulto, então é a mais perfeita reconstituição de uma infância.
Reconstituição da infância e suas cores foi feita mesmo por Pedro Nava nas suas memórias. Quando descreve, por exemplo, Juiz de Fora, em "Baú dos Ossos", coloca-se de costas para o morro do Cristo, que ele chama morro do Imperador, e divide a cidade em duas. Do seu lado direito, Santa Casa, fórum, toda uma estrutura social "bem pensante e cafardenta que, se pudesse amordaçar a vida e suprimir o sexo, não ficaria satisfeita e trataria ainda, como na frase de Ruy Barbosa, de forrar de lã o espaço e caiar a natureza de ocre".
Já o lado esquerdo da rua principal arcava o começo de uma cidade mais alegre, despreocupada e até revolucionária. Isso me anima, pois nasci do lado esquerdo, embora ache que as coisas sejam um pouco mais misturadas. Havia alguma tensão do lado direito e alguma repressão do lado esquerdo.
Para Pedro Nava, os ricos só tinham cara de felicidade quando voltavam do Rio de Janeiro, onde viviam suas aventuras sexuais. Já o reflexo do Rio, a capital no livro de Morley, é diferente. As meninas do Rio eram bem-vestidas, bem-educadas e algumas falavam palavras difíceis, como agrada-me sobremaneira este doce.
Helena resistia à família quando lhe pediam que fosse como as meninas do Rio. Isso significava o supremo tédio, pois nas ruas de Diamantina tinha conquistado sua liberdade e era muito feliz. Seu irmão Renato quase espanca um português que a chamou de rapariga. Ele ignorava que os portugueses chamam assim suas mocinhas.
Ao contrário do texto adulto de Nava, onde afloram as referências sexuais, o livro de Helena Morley passa quase inteiramente ao largo do tema. Claro, se você analisar muito, interpretar demais, acaba encontrando alguma coisa.
Mas estará, de qualquer forma, perdido. O texto límpido e o bom humor de uma menina sardenta resplandecem na história de Minas, levando-se a pensar seriamente que tipo de diamante dura para sempre. As pedras que rolaram nos negócios ou uma vida vivida com vontade e paixão?


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