|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FERNANDO GABEIRA
O inesgotável encanto de uma vida de menina
"Minha Vida de Menina"
foi o vencedor do festival de cinema de Gramado. Alegro-me pelas duas Helenas: Solberg, que realizou o filme, e Morley, que escreveu o livro.
Como entender o encanto de
um livro escrito no final do século
19? Qualquer grande explicação
vai esbarrar no fato de que Helena Morley era inteligente, viva e
talentosa. E isso basta para escrever um livro. Sobretudo se acrescentamos uma outra qualidade:
ela trabalhava duro, apesar da
idade. Às vezes, não tinha mais
do que meia hora para o almoço.
O pai dedicava-se à cata de diamantes; a mãe, para Helena, era
a pessoa mais disposta do mundo.
A família era um fracasso nos negócios. O único talento era a mineração. A vida dos irmãos era
dura. Cortavam lenha antes do
café e, às vezes, depois do almoço,
a mãe lhes dava uma faca e um
pedaço de madeira, ordenando
que fizessem palitos, pois era o tipo de trabalho que não perturbava a digestão.
Esse clássico da literatura brasileira talvez não tivesse vida tão
longa, se não caísse no campo
magnético de uma revisão da história, valorizando o cotidiano, os
fatos considerados insignificantes
diante da grande aventura coletiva que produz heróis, estátuas e
nomes de rua.
Grandes correntes da história
aparecem aqui e ali no relato da
menina cuja família paterna era
inglesa. Sente-se uma relação
ainda instável entre senhores e escravos libertos; da mesma maneira, percebe-se o lento declínio no
garimpo.
Nada disso importa muito
diante da personalidade da menina. Era maravilhosa, embora,
para os padrões da época e para
alguns articulistas de hoje, passasse por travessa. Seu grande segredo era achar o padre de Diamantina feio. Sofreu com isso.
Quase desmaiou quando, na primeira comunhão, queriam que
confessasse seus pecados, todos os
seus pecados. E as mucamas diziam em casa que um dos piores
pecados, sem remissão, era precisamente achar padre feio.
Dois detalhes da vida de Helena
Morley, cujo nome verdadeiro era
Alice Brandt, explicam, pelo menos para mim, a força de sua personalidade. Um deles é a ligação
com a comida. Avaliava as casas
dos parentes também pelo que
ofereciam às crianças. Na casa do
tio Geraldo era tão fino "como
um espelho". Quando ganhava
biscoitos, tratava de esconder a
lata de manteiga para melhorar o
sabor do presente. Um ex-escravo
que gostava dela reservava as melhores frutas, que ela escondia e ia
comendo aos poucos.
Ao anotar os trechos que a mobilizavam para a comida, fui socorrido por um texto de Winnicot,
para quem a felicidade do bebê
está muito ligada ao alimento, sobretudo porque, sendo esperto,
percebe, pelos ruídos familiares,
que a comida está chegando e goza antecipadamente o instante.
Mas é na relação com a roupa
que a menina vivia com firmeza.
A grande decepção foi quando
uma tia inglesa lhe deu um vestido azul-marinho para uma festa
muito esperada. Estavam todas
de cor-de-rosa, ou mesmo de
azul-celeste, e ela com aquela "cor
de viuva".
Uma de suas aventuras foi vender uma jóia da família, que estava de qualquer forma reservada
para ela, para mandar fazer um
vestido que se desdobrava em
dois. Assim estaria sempre bem
vestida e nunca repetiria o modelo.
Interpretações não revelam a riqueza de detalhes do livro nem a
sutileza com que ela examinava
os adultos com suas meias verdades, o frágil cimento que unia as
famílias, sobretudo quando discutiam herança e outras coisas
desagradáveis.
O livro é tão rico em detalhes
que, após sua primeira publicação, em 1942, chegou-se a pensar
se não fora escrito por um adulto.
Atribui-se a Guimarães Rosa a seguinte resposta para a dúvida: se
foi escrito por um adulto, então é
a mais perfeita reconstituição de
uma infância.
Reconstituição da infância e
suas cores foi feita mesmo por Pedro Nava nas suas memórias.
Quando descreve, por exemplo,
Juiz de Fora, em "Baú dos Ossos",
coloca-se de costas para o morro
do Cristo, que ele chama morro
do Imperador, e divide a cidade
em duas. Do seu lado direito, Santa Casa, fórum, toda uma estrutura social "bem pensante e cafardenta que, se pudesse amordaçar
a vida e suprimir o sexo, não ficaria satisfeita e trataria ainda, como na frase de Ruy Barbosa, de
forrar de lã o espaço e caiar a natureza de ocre".
Já o lado esquerdo da rua principal arcava o começo de uma cidade mais alegre, despreocupada
e até revolucionária. Isso me anima, pois nasci do lado esquerdo,
embora ache que as coisas sejam
um pouco mais misturadas. Havia alguma tensão do lado direito
e alguma repressão do lado esquerdo.
Para Pedro Nava, os ricos só tinham cara de felicidade quando
voltavam do Rio de Janeiro, onde
viviam suas aventuras sexuais. Já
o reflexo do Rio, a capital no livro
de Morley, é diferente. As meninas do Rio eram bem-vestidas,
bem-educadas e algumas falavam palavras difíceis, como agrada-me sobremaneira este doce.
Helena resistia à família quando lhe pediam que fosse como as
meninas do Rio. Isso significava o
supremo tédio, pois nas ruas de
Diamantina tinha conquistado
sua liberdade e era muito feliz.
Seu irmão Renato quase espanca
um português que a chamou de
rapariga. Ele ignorava que os portugueses chamam assim suas mocinhas.
Ao contrário do texto adulto de
Nava, onde afloram as referências sexuais, o livro de Helena
Morley passa quase inteiramente
ao largo do tema. Claro, se você
analisar muito, interpretar demais, acaba encontrando alguma
coisa.
Mas estará, de qualquer forma,
perdido. O texto límpido e o bom
humor de uma menina sardenta
resplandecem na história de Minas, levando-se a pensar seriamente que tipo de diamante dura
para sempre. As pedras que rolaram nos negócios ou uma vida vivida com vontade e paixão?
Texto Anterior: "O Colecionador" expõe paixão sem limites Próximo Texto: Panorâmica - Celebridade: Top model assume na TV uso de drogas Índice
|