São Paulo, sábado, 11 de setembro de 2010

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CRÍTICA CONTOS

Coletânea comprova sofisticação literária de Raymond Carver

Escritor americano une elementos surpreendentes à banalidade do cotidiano nas histórias de "68 Contos"


COM ESSA MISTURA DO BANAL E DO SURPREENDENTE, DA APARIÇÃO NO COTIDIANO MAIS CORRIQUEIRO DE INSTANTES DECISIVOS APENAS SUGERIDOS, CARVER SE TORNOU UM DOS ESCRITORES MAIS INFLUENTES DAS ÚLTIMAS DÉCADAS, IMPORTANTE INCLUSIVE PARA ROMPER A RESISTÊNCIA À PUBLICAÇÃO DE CONTOS NOS EUA


ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em um recente manual para a "arte da ficção" ("Oficina de Escritores", ed. Martins Fontes), Stephen Koch, ex-professor de escrita criativa em Princeton e Columbia, afirma que Raymond Carver (1938-1988), o "antivirtuoso" de sua época, era o autor mais imitado por seus alunos no final dos anos 1980 e ao longo dos anos 1990.
De acordo com ele, isso acontecia porque era fácil demais, porque o texto de Carver se caracterizaria por um estilo travado, pouco articulado: "Em qualquer história, é possível senti-lo a debater-se contra essa dificuldade de se expressar. Isso faz parte de seu "páthos" rude e também de sua força".
Existe mesmo uma formulação truncada em muitos contos do autor, como é fácil perceber no início de "Catedral": "Aquele cego, um velho amigo da minha mulher, ia chegar para passar a noite em nossa casa. A mulher dele tinha morrido. Por isso ele estava visitando os parentes de sua falecida mulher que moravam em Connecticut. Ele telefonou para a minha mulher, da casa dos parentes da mulher dele. Ficou tudo combinado. Ele ia chegar de trem, uma viagem de cinco horas, e minha mulher ia encontrá-lo na estação".
Um revisor bem-intencionado faria uma festa com esse trecho -e estragaria tudo. Não sei, contudo, se não é bastante exagerado considerá-lo, por isso, um "antivirtuoso". A leitura em sequência desta antologia que traz 68 contos de Carver em ótima tradução de Rubens Figueiredo mostra a aplicação de uma série de recursos literários muito sofisticados que indicam grande consciência de seu ofício.

PALAVRAS E COISAS
Há, por exemplo, no conto citado acima ou em "Do que Estamos Falando quando Falamos de Amor", uma cuidadosa elaboração a respeito da relação entre as "palavras e as coisas", sobre o que significa nomear: "Olhei com atenção a imagem da catedral na TV. Como é que eu ia conseguir até mesmo começar a descrever aquilo? Mas digamos que minha vida dependesse disso. Digamos que minha vida estivesse sendo ameaçada por um maluco que dissesse que eu tinha que fazer aquilo senão...".
Ou um delicado jogo de contenção e ampliação do tempo em uma forma literária em que essa é, por princípio, uma categoria fundamental, como acontece em "Penas", em que o encontro de dois casais, um bebê e um pavão que não sabia que era um pavão se transforma em um evento tão marcante: "O que desejei foi nunca esquecer nem perder o que estava sentindo naquela noite. Esse meu desejo se tornou realidade. E foi má sorte para mim que tenha acontecido isso".

INFLUÊNCIA
Com essa mistura do banal e do surpreendente, da aparição no cotidiano mais corriqueiro de instantes decisivos muitas vezes apenas sugeridos, Carver se tornou um dos escritores mais influentes das últimas décadas, importante inclusive para romper a resistência comercial à publicação de contos nos Estados Unidos, como mostra o bem-informado prefácio de Rodrigo Lacerda para este volume.
Nele é também descrita a relação de trabalho muito próxima do autor e de seu editor, Gordon Lish, relação que o livro permite ao leitor acompanhar ao trazer versões modificadas de quatro textos publicados em diferentes obras.


ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura da USP


68 CONTOS

AUTOR Raymond Carver
TRADUÇÃO Rubens Figueiredo
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 54 (712 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo




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