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CRÍTICA ROMANCE
Ricardo Piglia revê pesadelo argentino em trama policial
"Blanco Nocturno", lançado na Espanha, é história épica sobre a violência
SAMUEL TITAN JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA
Treze anos depois de "Dinheiro Queimado", Ricardo
Piglia reaparece, trazendo
debaixo do braço um livro de
300 páginas, "Blanco Nocturno" (alvo noturno), que a
imprensa portenha vem elogiando como perfeito romance policial na tradição do
noir, um "romance tradicional", de ares "épicos", como
sugeriu o autor em entrevista
recente ao jornal "Página 12".
De fato, a abertura do livro
evoca toda a tradição detetivesca que Piglia revisita há
décadas como leitor, editor e
crítico. Um forasteiro, Tony
Durán, chega a um lugarejo
argentino, onde priva da intimidade simultânea de duas
gêmeas, as irmãs Belladona,
ruivas e ricas.
FACADA CERTEIRA
Durán se torna assunto de
todos no lugar e logo depois
aparece morto, com uma facada certeira no peito, mas
sem a misteriosa bolsa (de dinheiro?) que levava na mão
ao desembarcar do trem.
É a deixa para a entrada do
comissário Croce e do escritor Emilio Renzi, personagem já bem conhecido dos
leitores dos romances de Ricardo Piglia.
Juntos, devem solucionar
o crime e travar uma batalha
contra Cueto, cínico figurão
da Justiça local empenhado
em encerrar o caso, mesmo
que à custa de um inocente.
Com os papéis assim distribuídos, "Blanco Nocturno" parece à beira de uma
trama ortodoxa, intricada,
mas, operado o deslinde, afinal inteligível e, por que não
dizer, racional.
Mas é então que Piglia
mostra ser o autor inquieto
de sempre: pequenos abalos
narrativos deslocam sem cessar o foco dos acontecimentos, que ora está na crônica
escandalosa de Tony Durán,
ora numa história de lavagem de dinheiro, ora ainda
no projeto delirante de uma
fábrica ultramoderna no
meio do nada.
Cada novo capítulo acrescenta novas possibilidades,
motivos, mandantes, manobras que não parecem admitir acomodação unívoca.
A única certeza que vai se
afirmando é a de que a solução cabal, se houver, será
baixa, sórdida e, no limite, irracional, pois "tudo é sempre
mais estúpido", diria o comissário Croce.
E então se produz a guinada mais inesperada de "Blanco Nocturno": aos poucos,
percebe-se que o verdadeiro
protagonista do livro, a ditar
as regras do jogo, é o pampa,
esse espaço que se franqueia
à exploração econômica e à
elaboração simbólica em
meados do século 19 justamente com as "campanhas
do deserto" -na verdade,
terríveis guerras de extermínio das populações indígenas que lançam as bases da
pujança agrícola argentina.
TÉDIO E VIOLÊNCIA
O mal de origem que produziu esse espaço esvaziado
aos poucos recai sobre quase
todos os personagens de
"Blanco Nocturno". A terra
roubada, legada e herdada
prende todos a um mesmo
circuito demoníaco de repetição, tédio e violência.
É por isso que Luca Belladona, o herói industrialista
do romance, tem horror às lides rurais (no campo, "os
produtos não são produtos,
mas réplicas naturais de objetos anteriores que se reproduzem igualmente uma e outra vez") e é por isso que se
torna figura nada grata aos
locais, que não lhe perdoam
o sonho altivo de escapar, de
despertar daquilo que outro
escritor, certa vez, chamou
"o pesadelo da história".
Da história argentina, no
caso, rica em pesadelos como sabidamente é. Mas
quem poderia dormir tranquilo só por estar do outro lado da fronteira, nestes tempos em que tudo se trafica e
se contrabandeia, se equivale e se identifica?
SAMUEL TITAN JR. é tradutor e professor
de literatura comparada na Universidade
de São Paulo
BLANCO NOCTURNO
AUTOR Ricardo Piglia
EDITORA Anagrama
QUANTO R$ 40, em média (304
págs.)
AVALIAÇÃO ótimo
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