São Paulo, sábado, 11 de setembro de 2010

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CRÍTICA ROMANCE

Ricardo Piglia revê pesadelo argentino em trama policial

"Blanco Nocturno", lançado na Espanha, é história épica sobre a violência

SAMUEL TITAN JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

Treze anos depois de "Dinheiro Queimado", Ricardo Piglia reaparece, trazendo debaixo do braço um livro de 300 páginas, "Blanco Nocturno" (alvo noturno), que a imprensa portenha vem elogiando como perfeito romance policial na tradição do noir, um "romance tradicional", de ares "épicos", como sugeriu o autor em entrevista recente ao jornal "Página 12".
De fato, a abertura do livro evoca toda a tradição detetivesca que Piglia revisita há décadas como leitor, editor e crítico. Um forasteiro, Tony Durán, chega a um lugarejo argentino, onde priva da intimidade simultânea de duas gêmeas, as irmãs Belladona, ruivas e ricas.

FACADA CERTEIRA
Durán se torna assunto de todos no lugar e logo depois aparece morto, com uma facada certeira no peito, mas sem a misteriosa bolsa (de dinheiro?) que levava na mão ao desembarcar do trem.
É a deixa para a entrada do comissário Croce e do escritor Emilio Renzi, personagem já bem conhecido dos leitores dos romances de Ricardo Piglia.
Juntos, devem solucionar o crime e travar uma batalha contra Cueto, cínico figurão da Justiça local empenhado em encerrar o caso, mesmo que à custa de um inocente.
Com os papéis assim distribuídos, "Blanco Nocturno" parece à beira de uma trama ortodoxa, intricada, mas, operado o deslinde, afinal inteligível e, por que não dizer, racional.
Mas é então que Piglia mostra ser o autor inquieto de sempre: pequenos abalos narrativos deslocam sem cessar o foco dos acontecimentos, que ora está na crônica escandalosa de Tony Durán, ora numa história de lavagem de dinheiro, ora ainda no projeto delirante de uma fábrica ultramoderna no meio do nada.
Cada novo capítulo acrescenta novas possibilidades, motivos, mandantes, manobras que não parecem admitir acomodação unívoca. A única certeza que vai se afirmando é a de que a solução cabal, se houver, será baixa, sórdida e, no limite, irracional, pois "tudo é sempre mais estúpido", diria o comissário Croce.
E então se produz a guinada mais inesperada de "Blanco Nocturno": aos poucos, percebe-se que o verdadeiro protagonista do livro, a ditar as regras do jogo, é o pampa, esse espaço que se franqueia à exploração econômica e à elaboração simbólica em meados do século 19 justamente com as "campanhas do deserto" -na verdade, terríveis guerras de extermínio das populações indígenas que lançam as bases da pujança agrícola argentina.

TÉDIO E VIOLÊNCIA
O mal de origem que produziu esse espaço esvaziado aos poucos recai sobre quase todos os personagens de "Blanco Nocturno". A terra roubada, legada e herdada prende todos a um mesmo circuito demoníaco de repetição, tédio e violência.
É por isso que Luca Belladona, o herói industrialista do romance, tem horror às lides rurais (no campo, "os produtos não são produtos, mas réplicas naturais de objetos anteriores que se reproduzem igualmente uma e outra vez") e é por isso que se torna figura nada grata aos locais, que não lhe perdoam o sonho altivo de escapar, de despertar daquilo que outro escritor, certa vez, chamou "o pesadelo da história".
Da história argentina, no caso, rica em pesadelos como sabidamente é. Mas quem poderia dormir tranquilo só por estar do outro lado da fronteira, nestes tempos em que tudo se trafica e se contrabandeia, se equivale e se identifica?
SAMUEL TITAN JR. é tradutor e professor de literatura comparada na Universidade de São Paulo


BLANCO NOCTURNO

AUTOR Ricardo Piglia
EDITORA Anagrama
QUANTO R$ 40, em média (304 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo




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