São Paulo, Segunda-feira, 11 de Outubro de 1999
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Morte que assombra

RÉGIS BONVICINO
especial para a Folha

Perplexo com a morte de João Cabral, embora, pela idade e doença, qualquer um a pudesse esperar ou prever para qualquer momento.
Cego, sem escrever havia pelo menos cinco anos, o que lhe sobrava? Para ele, escrever era ver. Alguma coisa como o que disse num poema ("A Luz de Joaquim Cardozo"): "Escrever de Joaquim Cardozo/só pode quem conhece/ aquela luz Velázquez /de onde nasceu e de que escreve".
Vidente, numa acepção intensa e nova da palavra. O ato de escrever como ato de alcançar, de distinguir, de presenciar. Escrever poemas como ato de imaginação: "Certo poema imaginou que a daria a ver/(quando dentro da dança) com a chama".
Maior, melhor, grande são termos que não dão conta do alcance, do valor, da extensão e da profundidade do trabalho de João Cabral, um cosmopolita (que, para ser poeta e brasileiro, viu-se obrigado a morar fora do país), antilírico, escrevendo contra a maré mediana da língua. Aquele que, "estrangeiro", impediu a diáspora da poesia brasileira e a sustentou num tom elevado.
O que dizer diante da morte de uma espécie de "deus", num momento crítico para a poesia, no qual a idéia de cultura se perde na de mercancia e o conceito de civilização se dilui no de vingança? Recorro a Murilo Mendes: "Comigo e contigo o antifascio". Assombro diante desta morte que nos deixa ainda mais lacerados.
Assombro diante da morte deste escritor que nos mostrou que a imaginação exige vigor, e não apenas sonho; talento, e não somente desejo. Assombro e medo com a morte de João Cabral, que dizia, sem meias palavras, que não gostava do timbre confessional de Fernando Pessoa, que apoiava as artes de vanguarda!
Vigor de criação que intentou um paraíso aqui, entre e para os homens. Talvez a morte de João Cabral represente a morte simbólica da poesia como ato político de resistência. Preservar o seu legado é impedir, com força, que isto aconteça.


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