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Morte que assombra
RÉGIS BONVICINO
especial para a Folha
Perplexo com a morte de João
Cabral, embora, pela idade e
doença, qualquer um a pudesse
esperar ou prever para qualquer
momento.
Cego, sem escrever havia pelo
menos cinco anos, o que lhe sobrava? Para ele, escrever era ver.
Alguma coisa como o que disse
num poema ("A Luz de Joaquim
Cardozo"): "Escrever de Joaquim
Cardozo/só pode quem conhece/
aquela luz Velázquez /de onde
nasceu e de que escreve".
Vidente, numa acepção intensa
e nova da palavra. O ato de escrever como ato de alcançar, de distinguir, de presenciar. Escrever
poemas como ato de imaginação:
"Certo poema imaginou que a daria a ver/(quando dentro da dança) com a chama".
Maior, melhor, grande são termos que não dão conta do alcance, do valor, da extensão e da profundidade do trabalho de João
Cabral, um cosmopolita (que, para ser poeta e brasileiro, viu-se
obrigado a morar fora do país),
antilírico, escrevendo contra a
maré mediana da língua. Aquele
que, "estrangeiro", impediu a
diáspora da poesia brasileira e a
sustentou num tom elevado.
O que dizer diante da morte de
uma espécie de "deus", num momento crítico para a poesia, no
qual a idéia de cultura se perde na
de mercancia e o conceito de civilização se dilui no de vingança?
Recorro a Murilo Mendes: "Comigo e contigo o antifascio". Assombro diante desta morte que
nos deixa ainda mais lacerados.
Assombro diante da morte deste escritor que nos mostrou que a
imaginação exige vigor, e não
apenas sonho; talento, e não somente desejo. Assombro e medo
com a morte de João Cabral, que
dizia, sem meias palavras, que
não gostava do timbre confessional de Fernando Pessoa, que
apoiava as artes de vanguarda!
Vigor de criação que intentou
um paraíso aqui, entre e para os
homens. Talvez a morte de João
Cabral represente a morte simbólica da poesia como ato político de
resistência. Preservar o seu legado
é impedir, com força, que isto
aconteça.
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