São Paulo, Segunda-feira, 11 de Outubro de 1999
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FERNANDO GABEIRA

Araguaia, onde o buraco é mais em cima

(Mineiros, Goiás) - Na escola, você aprende que todos os rios correm para o mar. Com o Araguaia é diferente. Mares de lama correm para ele. A erosão cria imensas crateras, às vezes com dois quilômetros de extensão. O buraco se encontra com o lençol freático. Os versos de Tom explicam o resto: é a lama, é a lama.
Isso acontece nas nascentes do rio, próximo ao Parque Nacional das Emas, em Goiás, fronteira com o Mato Grosso. Ao longo do curso do rio, há mais de uma centena de grandes crateras, que têm um nome horrível: voçoroca. Quando você vê esse desastre ambiental, o primeiro impulso é o de acabar logo com essas crateras, livrar o rio Araguaia do sufoco.
O buraco é mais em cima. As crateras foram criadas por um uso irracional das terras. Pastagens, estradas construídas na radical suposição que a reta é a menor distância entre dois pontos, desmatamento de 80% da vegetação, tudo isso foi montando um imenso labirinto que teremos de atravessar para restituir o vigor desse maravilhoso e subestimado rio nacional.
É quase um lugar comum hoje dizer que a água é um recurso estratégico, tão importante para o novo século como o petróleo foi para o século 20. Essa região do Parque das Emas, que merecia ser conhecida, é um divisor de águas. Dali partem águas que vão para o Prata, para o Pantanal e também para a Amazônia. Se a água fosse mesmo tão importante, aquela região de Santa Rita do Araguaia e Mineiros seria sensível como um país do Oriente Médio.
Não há nenhum problema em ser um apaixonado ecologista. Só não pode muito é acreditar nas próprias frases. Se a água fosse mesmo tão estratégica, já teria sido formulado um projeto nacional para salvar as nascentes do Araguaia ou criada uma agência regional para administrar o rio.
Para dizer a verdade, o ministro do Meio Ambiente, Gustavo Krause, andou visitando um dos grandes buracos. Há uma placa da passagem dele por lá. Uma espécie de inauguração do buraco. Ele cumpriu a promessa de mandar dinheiro para resolver o problema. Até hoje, o dinheiro ainda não chegou ao buraco.
É que, no princípio, se pensou apenas em atacar pontualmente, evitando que a cratera se estendesse. Mais tarde, viu-se que era preciso alterar radicalmente as práticas agrícolas na região. É quase uma revolução cultural que vai depender de dinheiro, meios de comunicação e assistência direta aos fazendeiros.
Perto de Mineiros, visitei a fazenda de um gaúcho, Milton Fries, que decidiu combater as crateras. Junto com ecologistas e técnicos, desenvolve ainda meio solitariamente uma luta inteligente. O buraco mesmo ele isolou com estacas e começou a atacar as causas que contribuem para que a água da chuva arraste o terreno arenoso.
Milton produz soja e está decidido a buscar uma qualidade total. Seu produto vai para o exterior e ele quer mostrar que é plantado e colhido em condições ecológicas corretas. Na hora de construir uma estrada, estudou o terreno com cuidado e seguiu a curva de nível, evitando que a estrada fosse um fator de inundação. Além disso, protegeu algumas áreas atingidas e vê com satisfação que o verde volta a surgir com vigor.
Baseado na sua experiência pessoal, ele acha que o desastre ecológico é reversível. Concordo. No entanto, grande parte dos fazendeiros não está no mesmo barco, a maioria deles por falta de dinheiro.
No lado do Mato Grosso, onde o problema também existe, os funcionários do governo analisaram o problema da erosão em cada fazenda. Às vezes, um pequeno financiamento pode resolver a parada.
Onde está o dinheiro? O Araguaia merecia um projeto de grandes dimensões, como já mereceram o Tietê, o Guaíba e a Baía da Guanabara. Será preciso pesquisar, replantar, educar. Temos gente e competência. Por que não tentar conseguir algo fora do país?
Um grupo de pesquisadores estrangeiros andou por aqui avaliando a doença do Araguaia. Dizem que ele será discutido em um congresso em Pequim, dentro de dois meses.
Daqui a pouco, vamos conviver com uma nova sigla, a Ana. É a Agência Nacional de Águas, que vai pôr em prática uma série de novidades. Uma delas é cumprir a lei que determina a criação dos comitês de bacia, unidades de decisão que vão discutir o uso racional da água e também as maneiras de preservar esse recurso vital.
Na edição de julho deste ano, a revista "Superinteressante" publicou um artigo mostrando que há um oceano de água doce enterrado no Brasil. O subsolo da América do Sul teria mais água do que todos os rios do mundo: 50 quatrilhões de litros. Estamos, portanto, montados numa grande fortuna.
Somos os sheiks do século 21 e deveríamos ter um pouco mais de cuidado com o subsolo, fortemente sensível aos agrotóxicos.
A guerrilha do Araguaia está sendo travada silenciosamente por grupos isolados que tentam salvar o rio. Ela não tem a dramaticidade dos confrontos armados da década de 60. Mas é uma luta admirável. Daí minha emoção quando fui abraçado por um homem de meia-idade que me disse, num encontro de Goiânia:
"Sou o Zezinho da guerrilha do Araguaia. Também estou nessa luta. Uma vez fiz um trabalho com meninos de uma favela que decidiram estudar um rio que passava no lugar. O rio estava poluído e era triste ver passar suas águas escuras. Eles levantaram a história do rio e, não satisfeitos, resolveram recuperar a memória do bairro, ouvindo os mais antigos. Foi um grande passo na conquista de uma identidade comunitária".
Percebi ali que, se tentamos salvar um rio, ele acaba, de certa forma, nos salvando também.


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