|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FERNANDO GABEIRA
Araguaia, onde o buraco é mais em cima
(Mineiros, Goiás) - Na escola,
você aprende que todos os rios
correm para o mar. Com o Araguaia é diferente. Mares de lama
correm para ele. A erosão cria
imensas crateras, às vezes com
dois quilômetros de extensão. O
buraco se encontra com o lençol
freático. Os versos de Tom explicam o resto: é a lama, é a lama.
Isso acontece nas nascentes do
rio, próximo ao Parque Nacional
das Emas, em Goiás, fronteira
com o Mato Grosso. Ao longo do
curso do rio, há mais de uma centena de grandes crateras, que têm
um nome horrível: voçoroca.
Quando você vê esse desastre ambiental, o primeiro impulso é o de
acabar logo com essas crateras, livrar o rio Araguaia do sufoco.
O buraco é mais em cima. As
crateras foram criadas por um
uso irracional das terras. Pastagens, estradas construídas na radical suposição que a reta é a menor distância entre dois pontos,
desmatamento de 80% da vegetação, tudo isso foi montando um
imenso labirinto que teremos de
atravessar para restituir o vigor
desse maravilhoso e subestimado
rio nacional.
É quase um lugar comum hoje
dizer que a água é um recurso estratégico, tão importante para o
novo século como o petróleo foi
para o século 20. Essa região do
Parque das Emas, que merecia ser
conhecida, é um divisor de águas.
Dali partem águas que vão para o
Prata, para o Pantanal e também
para a Amazônia. Se a água fosse
mesmo tão importante, aquela região de Santa Rita do Araguaia e
Mineiros seria sensível como um
país do Oriente Médio.
Não há nenhum problema em
ser um apaixonado ecologista. Só
não pode muito é acreditar nas
próprias frases. Se a água fosse
mesmo tão estratégica, já teria sido formulado um projeto nacional para salvar as nascentes do
Araguaia ou criada uma agência
regional para administrar o rio.
Para dizer a verdade, o ministro
do Meio Ambiente, Gustavo
Krause, andou visitando um dos
grandes buracos. Há uma placa
da passagem dele por lá. Uma espécie de inauguração do buraco.
Ele cumpriu a promessa de mandar dinheiro para resolver o problema. Até hoje, o dinheiro ainda
não chegou ao buraco.
É que, no princípio, se pensou
apenas em atacar pontualmente,
evitando que a cratera se estendesse. Mais tarde, viu-se que era
preciso alterar radicalmente as
práticas agrícolas na região. É
quase uma revolução cultural que
vai depender de dinheiro, meios
de comunicação e assistência direta aos fazendeiros.
Perto de Mineiros, visitei a fazenda de um gaúcho, Milton
Fries, que decidiu combater as
crateras. Junto com ecologistas e
técnicos, desenvolve ainda meio
solitariamente uma luta inteligente. O buraco mesmo ele isolou
com estacas e começou a atacar as
causas que contribuem para que a
água da chuva arraste o terreno
arenoso.
Milton produz soja e está decidido a buscar uma qualidade total.
Seu produto vai para o exterior e
ele quer mostrar que é plantado e
colhido em condições ecológicas
corretas. Na hora de construir
uma estrada, estudou o terreno
com cuidado e seguiu a curva de
nível, evitando que a estrada fosse
um fator de inundação. Além disso, protegeu algumas áreas atingidas e vê com satisfação que o verde volta a surgir com vigor.
Baseado na sua experiência pessoal, ele acha que o desastre ecológico é reversível. Concordo. No entanto, grande parte dos fazendeiros não está no mesmo barco, a
maioria deles por falta de dinheiro.
No lado do Mato Grosso, onde o
problema também existe, os funcionários do governo analisaram
o problema da erosão em cada fazenda. Às vezes, um pequeno financiamento pode resolver a parada.
Onde está o dinheiro? O Araguaia merecia um projeto de
grandes dimensões, como já mereceram o Tietê, o Guaíba e a
Baía da Guanabara. Será preciso
pesquisar, replantar, educar. Temos gente e competência. Por que
não tentar conseguir algo fora do
país?
Um grupo de pesquisadores estrangeiros andou por aqui avaliando a doença do Araguaia. Dizem que ele será discutido em um
congresso em Pequim, dentro de
dois meses.
Daqui a pouco, vamos conviver
com uma nova sigla, a Ana. É a
Agência Nacional de Águas, que
vai pôr em prática uma série de
novidades. Uma delas é cumprir a
lei que determina a criação dos
comitês de bacia, unidades de decisão que vão discutir o uso racional da água e também as maneiras de preservar esse recurso vital.
Na edição de julho deste ano, a
revista "Superinteressante" publicou um artigo mostrando que há
um oceano de água doce enterrado no Brasil. O subsolo da América do Sul teria mais água do que
todos os rios do mundo: 50 quatrilhões de litros. Estamos, portanto,
montados numa grande fortuna.
Somos os sheiks do século 21 e
deveríamos ter um pouco mais de
cuidado com o subsolo, fortemente sensível aos agrotóxicos.
A guerrilha do Araguaia está
sendo travada silenciosamente
por grupos isolados que tentam
salvar o rio. Ela não tem a dramaticidade dos confrontos armados
da década de 60. Mas é uma luta
admirável. Daí minha emoção
quando fui abraçado por um homem de meia-idade que me disse,
num encontro de Goiânia:
"Sou o Zezinho da guerrilha do
Araguaia. Também estou nessa
luta. Uma vez fiz um trabalho
com meninos de uma favela que
decidiram estudar um rio que
passava no lugar. O rio estava poluído e era triste ver passar suas
águas escuras. Eles levantaram a
história do rio e, não satisfeitos,
resolveram recuperar a memória
do bairro, ouvindo os mais antigos. Foi um grande passo na conquista de uma identidade comunitária".
Percebi ali que, se tentamos salvar um rio, ele acaba, de certa forma, nos salvando também.
Texto Anterior: Relâmpagos - João Gilberto Noll: Depois do almoço Próximo Texto: Free Jazz: Terrasson quer encontrar Quarteto em Cy Índice
|