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"ALDEOTA"
Literatura punitiva de Jáder de Carvalho se mantém atual
XICO SÁ
CRÍTICO DA FOLHA
Aldeota é um bairro metido
a besta de Fortaleza. Já foi de
gente muito mais rica, barões do
algodão, bancos, indústria nascente sob a grife JK e colunistas
sociais bajuladores que tomavam
uísque contrabandeado nas torneiras douradas dos palacetes. A
sua formação, nos anos 60, deu-se
à custa de fraudes fiscais, isenções
politiqueiras e trambique aos balaios, como quase todas as aldeias
metidas a chiques do velho e do
novo-riquismo do Brasil. Seja do
norte, seja do sul.
Daí é que o jornalista e escritor
cearense Jáder de Carvalho (1901-1985) apanha o título e desfecho
do seu romance-reportagem.
Lançado originalmente em 1963,
pela editora paulista Livraria Exposição de Livros, o volume volta
agora pela EDR (Edições Demócrito Rocha), do Ceará. Nada envelheceu no texto e muito menos
no pesadelo do personagem principal. Ele sonhava que os sem-teto
de então quebravam toda a sua
louça importada, entre outros delírios proféticos.
Francisco das Chagas Oliveira, o
Chicó, andarilho que vira um burguês de muito luxo e sono pouco
não por culpa, mas por desassossego de classe, é um personagem e
tanto. Não tem a obviedade esquemática do pobre cordial ou esperto, como propaga a maioria
dos recentes filmes brasileiros. De
"lascado", como os nordestinos
tratam o lúmpen, passa a escroque-mor, com a ajuda de uma
máquina cujo azeite podre faz rodar as catracas da esculhambação.
Carvalho dizia escrever "literatura punitiva". O livro voltou com
mais atualidade ainda, sem deixar
de ser literatura e/ou jornalismo
literário, para usar termo em voga. Chicó tem seu pendor de picaresco, como o personagem homônimo de Ariano Suassuna em
"O Auto da Compadecida" -este
tirado de cordel clássico do Nordeste-, mas o que dá tinta trágica em "Aldeota" é a metamorfose
daquele miserável em um "grandíssimo filho-da-puta", fraudador, ladrão do cobre público. O
romance até ensaia piedade, mas
deságua na tragédia burguesa.
Romance de estrada, típica narrativa dos nômades do Ceará,
Chicó, enquanto pobre, anda
mais do que má notícia. Numa
dessas, chega a Juazeiro, no momento da construção do mito do
padre Cícero. Ali conhece-se Floro Bartolomeu, médico baiano,
espécie de Golbery do Couto e Silva do "meu padim", deputado e
braço das alianças do "santo nordestino" com os coronéis.
"Aldeota" faz parte da coleção
Clássicos Cearenses, idealizada
pelo jornalista Lira Neto, ex-editor da EDR e responsável por uma
sacudida no mundo gráfico da região nos últimos anos. O romance
é trágico, aperreado, mas com direito a muitas risadas. Não propriamente pelo humor, mas por
um estado de espírito que os nordestinos chamamos de "fuleiragem", maneira quase nietzschiana de não se levar a sério nem no
mais solene dos momentos.
Aldeota
Autor: Jáder de Carvalho
Lançamento: EDR
(edrcomercial@fdr.com.br)
Quanto: R$ 35 (426 págs.)
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