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CONTARDO CALLIGARIS
"Tropa de Elite"
"Nóis goza", mas "nóis sofre" de culpa: somos desculpados de nossa inércia pela culpa
NA SEXTA passada, "Tropa de Elite", de José Padilha, estreou em São Paulo e no Rio;
amanhã, entrará em cartaz no resto
do país. O filme é inspirado no livro
"Elite da Tropa" (Objetiva), de Luiz
Eduardo Soares, André Batista e Rodrigo Pimentel (os dois últimos são
policiais).
Padilha nos apresenta um momento de crise na vida do capitão
Nascimento (o ótimo Wagner Moura), do Batalhão de Operações Policiais Especiais da PM do Rio.
Além do combate entre as forças
da ordem e os bandidos do tráfico,
há quatro eixos de tensão: a oposição entre o Bope (um pequeno corpo de incorruptíveis treinados para
a guerra) e um sistema policial inepto e corrupto; o conflito entre a vida
de família do capitão, que vai ser pai,
e, do outro lado, a brutalidade de sua
tarefa; a luta do capitão contra o desgaste e os efeitos traumáticos de seu
dia-a-dia; o embate entre a polícia e
os próprios cidadãos de quem ela
deveria defender a vida, a tranqüilidade e as posses.
Para cada um desses eixos, qualquer cinéfilo poderia evocar vários
filmes memoráveis, sobretudo americanos. Mas o embate entre a polícia e os cidadãos que ela defende revela, no filme de Padilha, uma especificidade nacional: nas classes privilegiadas e supostamente "ordeiras", a simpatia pelo crime e a antipatia pela polícia não são efeito, como de costume, de rebeldia e sede de
aventuras. Elas nascem de um forte
e difuso sentimento de culpa social
ou, no mínimo, justificam-se por ele.
Mas vamos com calma. Em "Tropa de Elite", o cineasta José Padilha
conseguiu, de maneira admirável,
suspender o julgamento e apresentar nossa "guerra" cotidiana como
um incômodo dilema moral, sem tomar partido.
Para alguns, essa suspensão do
julgamento valeu como uma negação da culpa social que, aparentemente, segundo eles, deveria orientar nossa compreensão do mundo.
Com isso, o filme foi acusado de
"idealizar" o Bope e de fazer uma
apologia "fascista" do "Estado policial" e da tortura instituída.
Essas críticas são descabidas, mas
resta a pergunta: será que não é perigoso calar nossa culpa social? Será
que a culpa diante da injustiça não é
justamente o que nos levaria a entendê-la melhor e a agir? Pois é, nada disso. Respondo:
1) Em regra, a culpa não produz
ação, mas descarrego. Funciona da
seguinte maneira: somos autorizados a fazer pouco ou nada para que a
situação mude porque o sofrimento
de nossa consciência nos absolve.
Inversão da frase de José Simão:
"nóis goza" de muitos privilégios,
mas "nóis sofre" de muita culpa. Somos desculpados de nossa inércia
pela culpa que sentimos.
2) Também em regra, a culpa é
péssima conselheira. Ela induz a
acreditar numa contabilidade estapafúrdia, pela qual há cidadãos que
devem e outros aos quais é devido,
sem a mediação de lei alguma. Assim, Ferréz, na Folha da segunda
passada, pode achar que o relógio
roubado de Luciano Huck "paga" a
miséria de seus assaltantes. Ele se
expressa como se a lei não fosse
(não devesse ser) a referência comum para todos: o problema não é
que assaltar é crime, Huck é culpado e devedor, e o "correria" cobra o
devido.
Essa maneira de entender o social oferece a todos uma compensação substancial: se a lei não é a
referência comum, podemos ser
assaltados nos faróis, mas também
podemos praticar cada tipo de mediocridade moral e de ilegalidade,
sonegar, saquear o bem público,
pagar salários de esmola e por aí
vai.
Em agosto, uma versão inacabada de "Tropa de Elite" foi distribuída ilegalmente em DVD, de camelô
em camelô, pelo país afora. Nessa
ocasião, houve vozes para justificar
a pirataria e racionalizar um desrespeito endêmico à lei. Havia o estilo "eu não serei o único otário",
que, grosso modo, diz assim: "Se
Renan Calheiros é presidente do
Senado, eu posso comprar um
DVD pirata". E havia o estilo "está
na hora de mudar", em que um ato
que nega a propriedade intelectual
é justificado diretamente pela injustiça social dominante. Valia tudo, salvo o óbvio: pela lei, piratear é
crime.
Pois bem, quando a culpa organiza nossa visão do mundo, tudo é
permitido, assaltar de moto, a pé,
de carro ou de colarinho branco.
Se você quiser passar uma hora e
meia com o coração na mão e se
quiser pensar e viver a realidade
nacional um pouco além dos limites impostos pela consciência culpada, não perca "Tropa de Elite".
ccalligari@uol.com.br
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