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CONTARDO CALLIGARIS
Feliz aniversário e sonhe com os anjos, Freud!
É o aniversário da "Interpretação dos Sonhos", a obra de Freud
que inaugurou a psicanálise: 100
anos neste mês.
Na imprensa americana, o
evento é celebrado. Os artigos revisam a literatura neurológica
dos últimos vinte anos para tentar
fornecer ao leitor um veredicto:
Freud tinha razão ou não?
"New York Times", "Boston
Globe", "Newsweek" e outros argumentam da seguinte forma:
Freud dizia que os sonhos são a
realização de desejos, ou seja, que
neles se expressam, por vias tortas,
desejos reprimidos, inconscientes.
Ora, será que os sonhos são isso
mesmo?
Até o ano passado, nessa matéria, reinavam os trabalhos de
Allan Hobson, psiquiatra americano segundo o qual Freud era todo pseudociência. Para Hobson,
os sonhos seriam uma escória da
atividade cerebral durante o sono
REM. O REM ("Rapid Eye Movement", "Movimento Rápido dos
Olhos") é aquele tempo do sono
durante o qual fica bem ativa a
parte do cérebro que comanda
funções biológicas profundas.
Nós sonharíamos no sono REM
porque, nesta fase, o cérebro dispararia neurônios ao acaso, como
para se purgar dos engarrafamentos do dia. Os sonhos, portanto, seriam apenas a aparição explícita
e direta de emoções elementares e
desconexas. Evidentemente, essa
conclusão não cola muito com
nossa experiência de sonhadores.
Mas tanto faz, pois fomos liberados dessas idéias. Desde o ano
passado, Mark Solms, neurologista inglês, vem demolindo a versão
Hobson. Por um lado, Solms mostrou que os sonhos não dependem
do sono REM. Por outro, ele verificou que não conseguem mais sonhar sujeitos que sofrem danos cerebrais que comprometam uma
parte dos lobos frontais do cérebro, que transmite a dopamina.
Essa parte do cérebro -e a dopamina- é crucial para a motivação, diretamente relacionada
com a premência dos desejos.
Conclusão: os sonhos parecem
ser produzidos por desejos. Não
está provado que esses desejos sejam reprimidos, como pensava
Freud. Mesmo assim, é um ponto
para a psicanálise, logo no aniversário de sua obra fundadora. E
deu manchete -Freud tinha razão, ou quase.
Eu deveria ficar satisfeito com
isso, mas lendo esses artigos todos
surge um vago mal-estar. Freud
tinha ambições neurológicas e estaria feliz de se ver hoje vindicado
contra o Seu Hobson. Mas a "Interpretação dos Sonhos" não é
uma tentativa de descrever o processo neuronial do sonhar.
O livro abre com uma revisão
da imensa literatura que a humanidade consagrou aos sonhos e à
tentativa de interpretá-los. Os sonhos sempre foram o pretexto de
uma interrogação. São mensagens dos deuses? Será que nos falam de nosso futuro? Será que neles as sombras dos mortos nos visitam? E com Freud? Será que com
eles podemos aprender sobre nosso próprio desejo, algo dele que,
quando acordados, não gostaríamos de saber?
Por isso, no limiar do século, o
livro se ergue como uma espécie
de "Carón demônio": "Entrem,
estão condenados a se perguntar o
que tudo isso significa, a começar
por vocês, que nem sabem direito
o que querem. Entrem para este
século: as significações estabelecidas da vida e do mundo já se foram de vez, agora inventem".
A "Interpretação dos Sonhos"
não fornece interpretação nenhuma: sugere um método e promete
que, se você interrogar seus sonhos, como se eles contivessem alguma mensagem sobre desejos
inauditos, quem sabe, com este
exercício, você consiga mudar algo em suas vidas.
Assim, a unânime celebração
neurológica do aniversário se parece mais com um enterro. O veredicto, embora favorável a Freud, é
o sintoma de uma época em que o
sujeito gostaria, sobretudo, de se
aposentar da tarefa de descobrir
sentidos para sua vida. Bem venha, parecemos dizer, qualquer
migalha de uma explicação do
mundo que nos permita descansar. O tempo das interrogações, da
construção de narrativas com as
quais dar sentido a nossa presença no mundo, o tempo também
do desespero pela falta que fazem
os sentidos tradicionais, este tempo está acabando.
Para substituir as angústias de
uma procura de sentido que cansou a todos, o século celebra seu
fim com uma bebedeira de descrições que são tão corretas quanto
parciais e que, sorrateiramente,
vêm modificando a qualidade de
nossa experiência cotidiana. Não
por má vontade, só por cansaço.
Por exemplo, nossa maneira de
descrever os sonhos modifica nossa experiência de sonhadores. Já
pensamos que os sonhos vinham
dos deuses: podíamos acordar e
tentar escrutar a vontade divina.
Já pensamos que eles vinham dos
mortos e, com Freud, pensamos
que vinham de zonas silenciosas
dentro de nós mesmos. Aprendemos a interrogá-los com curiosidade e desconfiança: o que é isso
ainda -perguntávamos- que
pareço desejar e na verdade não
quero de jeito nenhum?
Agora, parece que Freud tinha
razão, mas receio que o verdadeiro triunfo seja o da descrição neurológica, reconhecida no debate
como lugar em que se decide o que
é verdade. Receio, em suma, acordar amanhã atormentado com
um sonho e responder a minha
mulher, que poderia me olhar
preocupada: "Nada, são só neurônios que dispararam errado".
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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