São Paulo, Quinta-feira, 11 de Novembro de 1999
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CONTARDO CALLIGARIS
Feliz aniversário e sonhe com os anjos, Freud!

É o aniversário da "Interpretação dos Sonhos", a obra de Freud que inaugurou a psicanálise: 100 anos neste mês.
Na imprensa americana, o evento é celebrado. Os artigos revisam a literatura neurológica dos últimos vinte anos para tentar fornecer ao leitor um veredicto: Freud tinha razão ou não?
"New York Times", "Boston Globe", "Newsweek" e outros argumentam da seguinte forma: Freud dizia que os sonhos são a realização de desejos, ou seja, que neles se expressam, por vias tortas, desejos reprimidos, inconscientes. Ora, será que os sonhos são isso mesmo?
Até o ano passado, nessa matéria, reinavam os trabalhos de Allan Hobson, psiquiatra americano segundo o qual Freud era todo pseudociência. Para Hobson, os sonhos seriam uma escória da atividade cerebral durante o sono REM. O REM ("Rapid Eye Movement", "Movimento Rápido dos Olhos") é aquele tempo do sono durante o qual fica bem ativa a parte do cérebro que comanda funções biológicas profundas.
Nós sonharíamos no sono REM porque, nesta fase, o cérebro dispararia neurônios ao acaso, como para se purgar dos engarrafamentos do dia. Os sonhos, portanto, seriam apenas a aparição explícita e direta de emoções elementares e desconexas. Evidentemente, essa conclusão não cola muito com nossa experiência de sonhadores.
Mas tanto faz, pois fomos liberados dessas idéias. Desde o ano passado, Mark Solms, neurologista inglês, vem demolindo a versão Hobson. Por um lado, Solms mostrou que os sonhos não dependem do sono REM. Por outro, ele verificou que não conseguem mais sonhar sujeitos que sofrem danos cerebrais que comprometam uma parte dos lobos frontais do cérebro, que transmite a dopamina. Essa parte do cérebro -e a dopamina- é crucial para a motivação, diretamente relacionada com a premência dos desejos.
Conclusão: os sonhos parecem ser produzidos por desejos. Não está provado que esses desejos sejam reprimidos, como pensava Freud. Mesmo assim, é um ponto para a psicanálise, logo no aniversário de sua obra fundadora. E deu manchete -Freud tinha razão, ou quase.
Eu deveria ficar satisfeito com isso, mas lendo esses artigos todos surge um vago mal-estar. Freud tinha ambições neurológicas e estaria feliz de se ver hoje vindicado contra o Seu Hobson. Mas a "Interpretação dos Sonhos" não é uma tentativa de descrever o processo neuronial do sonhar.
O livro abre com uma revisão da imensa literatura que a humanidade consagrou aos sonhos e à tentativa de interpretá-los. Os sonhos sempre foram o pretexto de uma interrogação. São mensagens dos deuses? Será que nos falam de nosso futuro? Será que neles as sombras dos mortos nos visitam? E com Freud? Será que com eles podemos aprender sobre nosso próprio desejo, algo dele que, quando acordados, não gostaríamos de saber?
Por isso, no limiar do século, o livro se ergue como uma espécie de "Carón demônio": "Entrem, estão condenados a se perguntar o que tudo isso significa, a começar por vocês, que nem sabem direito o que querem. Entrem para este século: as significações estabelecidas da vida e do mundo já se foram de vez, agora inventem".
A "Interpretação dos Sonhos" não fornece interpretação nenhuma: sugere um método e promete que, se você interrogar seus sonhos, como se eles contivessem alguma mensagem sobre desejos inauditos, quem sabe, com este exercício, você consiga mudar algo em suas vidas.
Assim, a unânime celebração neurológica do aniversário se parece mais com um enterro. O veredicto, embora favorável a Freud, é o sintoma de uma época em que o sujeito gostaria, sobretudo, de se aposentar da tarefa de descobrir sentidos para sua vida. Bem venha, parecemos dizer, qualquer migalha de uma explicação do mundo que nos permita descansar. O tempo das interrogações, da construção de narrativas com as quais dar sentido a nossa presença no mundo, o tempo também do desespero pela falta que fazem os sentidos tradicionais, este tempo está acabando.
Para substituir as angústias de uma procura de sentido que cansou a todos, o século celebra seu fim com uma bebedeira de descrições que são tão corretas quanto parciais e que, sorrateiramente, vêm modificando a qualidade de nossa experiência cotidiana. Não por má vontade, só por cansaço.
Por exemplo, nossa maneira de descrever os sonhos modifica nossa experiência de sonhadores. Já pensamos que os sonhos vinham dos deuses: podíamos acordar e tentar escrutar a vontade divina. Já pensamos que eles vinham dos mortos e, com Freud, pensamos que vinham de zonas silenciosas dentro de nós mesmos. Aprendemos a interrogá-los com curiosidade e desconfiança: o que é isso ainda -perguntávamos- que pareço desejar e na verdade não quero de jeito nenhum?
Agora, parece que Freud tinha razão, mas receio que o verdadeiro triunfo seja o da descrição neurológica, reconhecida no debate como lugar em que se decide o que é verdade. Receio, em suma, acordar amanhã atormentado com um sonho e responder a minha mulher, que poderia me olhar preocupada: "Nada, são só neurônios que dispararam errado".

E-mail: ccalligari@uol.com.br


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