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Saramago sai da caverna
Associated Press
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José Saramago, que lança "A Caverna", primeiro romance após vencer o Prêmio Nobel de 1998 |
No dia em que faz 78 anos, autor português publica "A Caverna", seu primeiro romance depois do Nobel
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CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL
Ele já havia ensaiado a cegueira.
Mas, quando se pensava que lhe
tinha dado todos os nomes, eis
que Saramago sai de novo da gruta. Com as pupilas ainda dilatadas
pela escuridão da caverna, o escritor português vem nos dizer que
não estamos todos cegos, mas que
aquilo que achamos que é a realidade não passa de sombras.
Esse é o miolo temático de "A
Caverna", primeiro romance que
o autor publica depois de ganhar
o Nobel de Literatura de 1998.
O livro, que fecha uma "trilogia
involuntária" com "Ensaio sobre
a Cegueira" e "Todos os Nomes",
vai às estantes de Brasil e Portugal
no mesmo dia -16 de novembro,
quinta-feira- em que o autor
troca os seus 77 anos pelos 78.
Nessa data, ele comemora o aniversário e a vitória da aposta que
fez consigo. "Tinha de terminá-lo
antes do fim do ano 2000. É minha despedida do século. Vamos
entrar com outras coisas", explica
José Saramago à Folha.
Não é fácil entrar em "A Caverna", o décimo romance do escritor. Por isso convidamos seu arquiteto a nos servir de guia para
esse livro sobre vida e morte, sobre alienação e esclarecimento,
sobre palavras e silêncio.
Leia a seguir trechos da entrevista em que José Saramago usa
sua voz grave para explicar a gravidade que enxerga na situação
do ser humano. "Vivemos, creio
que é bastante claro, uma cultura
da frivolidade", sintetiza.
Folha - "A Caverna" é o livro mais
pessimista que o sr. já escreveu?
José Saramago - Eu não falaria
em mais ou menos pessimismo.
Toda a gente que tem olhos na cara e entendimento para ao menos
tentar compreender as coisas reconhece que a situação em que vivemos não justifica uma atitude
otimista. Aquilo que "A Caverna"
vem dizer, pelo menos o que pretendi, é que nós passamos por
uma situação em que acabamos
por confundir a realidade com a
imagem dela.
Folha - Qual seria a grande caverna cercando todos nós?
Saramago - Não sei bem. Nos
tempos antigos, as pessoas eram
formadas em uma grande superfície que era a catedral. Agora o lugar central de formação das novas
mentalidades é o shopping center. O centro comercial acabou
por ocupar o lugar que antigamente era da praça pública. Toda
a gente caminha para esse espaço
fechado, essa espécie de enorme
caverna que é o shopping center.
É aí que as pessoas vão aprender a
viver de uma maneira que não era
a nossa.
Folha - E como o sr. recebe esse
novo modo de pensar?
Saramago - Não gosto dele. Mas
também não quero dizer que gostava de tudo o que formava a
mentalidade anterior. Não é disso
que se trata. Não estou a fazer juízos de valor. Estou só a dizer que
há uma mentalidade nova a se
formar e que não envolve só o
centro comercial, mas também a
discoteca e o estádio de futebol.
Folha - E a Internet?
Saramago - A Internet comunica
muito menos do que aquilo que se
crê. Para que haja comunicação,
penso que é necessário que o outro esteja perto de nós. A comunicação não é só possível à distância
e por meios eletrônicos. É verdade
que antigamente nós também escrevíamos cartas. Não éramos nós
que íamos pelo correio, mas uma
folha de papel dobrada que chegava ao outro lado.
Ocorre que vivemos, creio que é
bastante claro, em uma cultura da
frivolidade. Sabemos que 90% ou
mais das mensagens que circulam
pela Internet não têm importância nenhuma, ainda que a vida
também seja feita de banalidades.
Folha - O sr. é contra a Internet?
Saramago - Não. Ela é evidentemente um instrumento verdadeiramente extraordinário. A bondade da Internet depende do uso
que se faça dela. Se é para satisfazer uma necessidade de conhecimento, de saber, a Internet torna-se algo absolutamente precioso.
Mas, se as pessoas se convertem
em maníacos pela Internet, há aí
uma perversão do instrumento. O
benéfico vira prejudicial.
Folha - Navegar na Internet é preciso para o sr.?
Saramago - Eu escrevo no computador, mas não navego. Mas
não por problema de geração.
Creio que há uma espécie de
doença, que chamo de internite,
que ataca não só os jovens, mas
pessoas mais velhas.
Folha - Cipriano Algor, personagem central de "A Caverna", consegue encarar uma nova empreitada
comercial aos 64 anos. Ele desenvolve um novo produto usando equipamentos novos. Até que ponto o
sr., que começou seus grandes romances tardiamente, se identifica
com ele?
Saramago - Não me identifico
nem sou o Cipriano, assim como
não sou qualquer personagem
dos livros meus. Cipriano significa algo que está a terminar. Uma
cultura e um modo de trabalhar e
fazer as coisas que a sociedade
moderna já não quer. É, portanto,
o homem que está na pior das situações, em que aquilo que faz já
não querem e não sabe o que pode fazer. Ninguém quer nada desse homem, e não lhe resta nada
senão partir para outro lugar.
Folha - O narrador de "A Caverna" diz que nenhum tempo perdido é recuperável. Como um escritor
que passa a fazer seus grandes romances na idade em que o sr. o fez
lida com a busca do tempo perdido?
Saramago - É certo que comecei
a parte mais importante do meu
trabalho tardiamente. Mas não
creio que tenha tido tempos perdidos. Acho que tive de viver tudo
o que vivi para chegar onde estou.
Pode ser que antes de me lançar
na aventura da escrita o meu tempo tenha sido desperdiçado. Não
se pode retomar o tempo que passou, mas as experiências recolhidas ao desfrutar dele não se perdem.
Folha - O protagonista de "A Caverna" diz que só se pode falar da
morte estando vivo. O que o sr. teria a falar sobre a morte?
Saramago - Não quero ter nenhuma relação com a morte antes
de chegar a hora, mas o que quis
dizer no livro é que, ao contrário
de muitas pessoas que têm alguma relutância em falar da morte,
eu falo com a maior naturalidade
possível. Se há algo certo e inevitável, é o fim.
Folha - O sr. escreve em "A Caverna" que "nem todos os criadores se
distraem de suas criaturas". Esse
"abandono" seria o centro do
ateísmo do sr.?
Saramago - Não. Essa é uma alusão que pode ser entendida assim,
mas nem tem relação com meu
ateísmo. A frase diz respeito ao fato de que, se é que houve um criador, é evidente que ele se desinteressou de nós. Não há sinais de
sua existência no mundo.
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