São Paulo, sábado, 11 de novembro de 2000

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Saramago sai da caverna

Associated Press
José Saramago, que lança "A Caverna", primeiro romance após vencer o Prêmio Nobel de 1998



No dia em que faz 78 anos, autor português publica "A Caverna", seu primeiro romance depois do Nobel


CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Ele já havia ensaiado a cegueira. Mas, quando se pensava que lhe tinha dado todos os nomes, eis que Saramago sai de novo da gruta. Com as pupilas ainda dilatadas pela escuridão da caverna, o escritor português vem nos dizer que não estamos todos cegos, mas que aquilo que achamos que é a realidade não passa de sombras.
Esse é o miolo temático de "A Caverna", primeiro romance que o autor publica depois de ganhar o Nobel de Literatura de 1998.
O livro, que fecha uma "trilogia involuntária" com "Ensaio sobre a Cegueira" e "Todos os Nomes", vai às estantes de Brasil e Portugal no mesmo dia -16 de novembro, quinta-feira- em que o autor troca os seus 77 anos pelos 78.
Nessa data, ele comemora o aniversário e a vitória da aposta que fez consigo. "Tinha de terminá-lo antes do fim do ano 2000. É minha despedida do século. Vamos entrar com outras coisas", explica José Saramago à Folha.
Não é fácil entrar em "A Caverna", o décimo romance do escritor. Por isso convidamos seu arquiteto a nos servir de guia para esse livro sobre vida e morte, sobre alienação e esclarecimento, sobre palavras e silêncio.
Leia a seguir trechos da entrevista em que José Saramago usa sua voz grave para explicar a gravidade que enxerga na situação do ser humano. "Vivemos, creio que é bastante claro, uma cultura da frivolidade", sintetiza.

Folha - "A Caverna" é o livro mais pessimista que o sr. já escreveu?
José Saramago -
Eu não falaria em mais ou menos pessimismo. Toda a gente que tem olhos na cara e entendimento para ao menos tentar compreender as coisas reconhece que a situação em que vivemos não justifica uma atitude otimista. Aquilo que "A Caverna" vem dizer, pelo menos o que pretendi, é que nós passamos por uma situação em que acabamos por confundir a realidade com a imagem dela.

Folha - Qual seria a grande caverna cercando todos nós?
Saramago -
Não sei bem. Nos tempos antigos, as pessoas eram formadas em uma grande superfície que era a catedral. Agora o lugar central de formação das novas mentalidades é o shopping center. O centro comercial acabou por ocupar o lugar que antigamente era da praça pública. Toda a gente caminha para esse espaço fechado, essa espécie de enorme caverna que é o shopping center. É aí que as pessoas vão aprender a viver de uma maneira que não era a nossa.

Folha - E como o sr. recebe esse novo modo de pensar?
Saramago -
Não gosto dele. Mas também não quero dizer que gostava de tudo o que formava a mentalidade anterior. Não é disso que se trata. Não estou a fazer juízos de valor. Estou só a dizer que há uma mentalidade nova a se formar e que não envolve só o centro comercial, mas também a discoteca e o estádio de futebol.

Folha - E a Internet?
Saramago -
A Internet comunica muito menos do que aquilo que se crê. Para que haja comunicação, penso que é necessário que o outro esteja perto de nós. A comunicação não é só possível à distância e por meios eletrônicos. É verdade que antigamente nós também escrevíamos cartas. Não éramos nós que íamos pelo correio, mas uma folha de papel dobrada que chegava ao outro lado.
Ocorre que vivemos, creio que é bastante claro, em uma cultura da frivolidade. Sabemos que 90% ou mais das mensagens que circulam pela Internet não têm importância nenhuma, ainda que a vida também seja feita de banalidades.

Folha - O sr. é contra a Internet?
Saramago -
Não. Ela é evidentemente um instrumento verdadeiramente extraordinário. A bondade da Internet depende do uso que se faça dela. Se é para satisfazer uma necessidade de conhecimento, de saber, a Internet torna-se algo absolutamente precioso. Mas, se as pessoas se convertem em maníacos pela Internet, há aí uma perversão do instrumento. O benéfico vira prejudicial.

Folha - Navegar na Internet é preciso para o sr.?
Saramago -
Eu escrevo no computador, mas não navego. Mas não por problema de geração. Creio que há uma espécie de doença, que chamo de internite, que ataca não só os jovens, mas pessoas mais velhas.

Folha - Cipriano Algor, personagem central de "A Caverna", consegue encarar uma nova empreitada comercial aos 64 anos. Ele desenvolve um novo produto usando equipamentos novos. Até que ponto o sr., que começou seus grandes romances tardiamente, se identifica com ele?
Saramago -
Não me identifico nem sou o Cipriano, assim como não sou qualquer personagem dos livros meus. Cipriano significa algo que está a terminar. Uma cultura e um modo de trabalhar e fazer as coisas que a sociedade moderna já não quer. É, portanto, o homem que está na pior das situações, em que aquilo que faz já não querem e não sabe o que pode fazer. Ninguém quer nada desse homem, e não lhe resta nada senão partir para outro lugar.

Folha - O narrador de "A Caverna" diz que nenhum tempo perdido é recuperável. Como um escritor que passa a fazer seus grandes romances na idade em que o sr. o fez lida com a busca do tempo perdido?
Saramago -
É certo que comecei a parte mais importante do meu trabalho tardiamente. Mas não creio que tenha tido tempos perdidos. Acho que tive de viver tudo o que vivi para chegar onde estou. Pode ser que antes de me lançar na aventura da escrita o meu tempo tenha sido desperdiçado. Não se pode retomar o tempo que passou, mas as experiências recolhidas ao desfrutar dele não se perdem.

Folha - O protagonista de "A Caverna" diz que só se pode falar da morte estando vivo. O que o sr. teria a falar sobre a morte?
Saramago -
Não quero ter nenhuma relação com a morte antes de chegar a hora, mas o que quis dizer no livro é que, ao contrário de muitas pessoas que têm alguma relutância em falar da morte, eu falo com a maior naturalidade possível. Se há algo certo e inevitável, é o fim.

Folha - O sr. escreve em "A Caverna" que "nem todos os criadores se distraem de suas criaturas". Esse "abandono" seria o centro do ateísmo do sr.?
Saramago -
Não. Essa é uma alusão que pode ser entendida assim, mas nem tem relação com meu ateísmo. A frase diz respeito ao fato de que, se é que houve um criador, é evidente que ele se desinteressou de nós. Não há sinais de sua existência no mundo.


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