São Paulo, sábado, 11 de novembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A CAVERNA DE SARAMAGO
Primeiro livro do próximo milênio será policial com Alexandre Dumas como protagonista
"A Caverna" é a minha despedida do século", diz escritor

DA REPORTAGEM LOCAL

Leia a seguir a continuação da entrevista com o escritor José Saramago. (CEM)

Folha - Até que ponto o primeiro Nobel da literatura portuguesa lhe pesou ao construir "A Caverna"?
Saramago -
Não pesou. Tenho felizmente uma relação muito pouco dramática com o meu trabalho. Eu entendo que depois do prêmio eu compreenderia se ficasse bloqueado ou intimidado, se ficasse pensando "e agora, o que faço depois do prêmio, o que todos irão pensar?". Tenho de dizer que nunca senti essa preocupação. Escrevi este livro com o mesmo estado de espírito com que fiz todos os outros. O livro saiu como deveria ter saído e estou contente com ele, devo dizer.

Folha - Esse foi mesmo o livro em que o sr. gastou menos tempo?
Saramago -
Não tanto, mas é certo que criei uma espécie de aposta de mim comigo mesmo de terminá-lo antes do fim do ano 2000. É uma espécie de despedida do século. Vamos entrar com outras coisas. Sendo esse livro, como os dois anteriores, um apanhado de minha visão do mundo, eu queria que ele saísse antes do novo século. Trabalhei mais rapidamente do que costumo, mas creio que o resultado é satisfatório.

Folha - Como o sr. enxerga "A Caverna" em relação a sua obra anterior, em especial com "Ensaio sobre a Cegueira" e "Todos os Nomes", que o sr. já disse formarem uma espécie de trilogia?
Saramago -
É uma trilogia involuntária. Quando estava a escrever "Ensaio" não tinha idéia do que faria depois. Só quando estava fazendo "A Caverna" que me apercebi que havia uma certa unidade entre eles. São livros com temas completamente diferentes uns dos outros, mas que de qualquer forma permitiriam que o leitor soubesse o modo como o autor desses livros entende o mundo de hoje. Não quer dizer que o leitor seja obrigado a partilhar da minha visão. Ele sabe como o mundo lhe parece.

Folha - No aspecto formal os três livros usam como modelo a alegoria, a parábola. Por quê?
Saramago -
Concordo. Pode parecer, e é uma crítica que eu aceitaria, que estou a recorrer a um gênero literário que parecia ultrapassado, que havia ficado lá pelo século 17 ou coisa que o valha. Mas é verdade, e admito que possa estar enganado, que, se eu escrevesse esses três livros não recorrendo a essa forma metafórica, as obras teriam muito menos força. Eu creio que, como tudo hoje se pode contar, há uma certa banalização do realismo, embora por outro lado os meus romances sejam realistas. O fato é que recorro a um modo que chamamos de alegoria por acreditar que há um esvaziamento da forma realista direta de contar as coisas. O "Ensaio sobre a Cegueira" teria muito menos efeito se tivesse sido contado de modo comum.
Em "A Caverna", por exemplo, note que o leitor só entra na caverna propriamente por volta da página 300 (das 350 do livro).

Folha - O sr. não sabe a ansiedade que isso causa...
Saramago -
Isso tudo foi muito bem pensado (risos).

Folha - Na alegoria da caverna de Platão, em que o sr. diz ter se baseado para fazer "A Caverna", há aquele que sai da gruta e encontra a realidade. Por que em seu romance não há esse personagem?
Saramago -
A diferença nesse caso é que os habitantes da caverna de Platão nunca saíram de lá. E quando um deles sai, os outros não acreditam nele. Na minha caverna, os personagens vão de fora para dentro. Quando chegam lá dentro compreendem que aquele mundo não pode ser o deles. O livro vai em tendência contrária à da sociedade atual. O autor deste livro quer que voltemos as costas para o que é cômodo, o que é errado. O autor quer que as pessoas não renunciem a pensar no que está a acontecer.

Folha - O sr. diz que nem a juventude sabe o que pode nem a velhice pode o que sabe. O sr. vai finalmente terminar o projeto sobre o qual sempre fala, o chamado "Livro das Tentações", no qual contaria seus primeiros 14 anos de vida? O sr. vai usar a sabedoria dos anos para reconstruir sua própria juventude?
Saramago -
Esse livro já não se chamará "O Livro das Tentações". Deve virar "O Livro da Lembrança". Quero muito ver se realmente me ponho para trabalhar nesse livro. O que acontece é que tenho umas tarefas a cumprir antes. Entre elas, devo escrever o livro que me comprometi a fazer para a Companhia das Letras, para a série "Literatura ou Morte". É uma aventura para mim, pois nunca escrevi nada que tivesse relação com crimes. Meu personagem será Alexandre Dumas, o pai.
Para complicar, apareceu outra idéia que pode gerar um romance. Espero que não tenha de adiar novamente "O Livro das Lembranças". Vamos lá ver.


Texto Anterior: Frase
Próximo Texto: Conheça um pouco da obra
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.