São Paulo, sexta-feira, 11 de novembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

"Road movie" sertanejo celebra a diferença

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Não foi à toa que "Cinema, Aspirinas e Urubus" ganhou prêmios importantes em Cannes, no Rio e em São Paulo. Desde "Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos, não se via num filme realista brasileiro (Glauber é outra história) ambientado no sertão uma tamanha adequação entre estética e tema, entre ação narrada e modo de narrar.
O que se conta no longa-metragem de estréia de Marcelo Gomes é o encontro entre um alemão que vende aspirinas pelas cidades do interior nordestino e um sertanejo que busca escapar da seca indo para a cidade grande. O ano é 1942, quando o acirramento da Segunda Guerra acaba por forçar o relutante governo de Getúlio Vargas a entrar no conflito.
O alemão foge da guerra, o brasileiro foge da miséria. Companheiros de viagem, eles formam uma amizade que põe em relevo diferenças culturais, impasses históricos, aspirações díspares. A relação dos dois com a população sertaneja é mediada pelos filmes que eles exibem em praça pública.
Para explorar ao máximo as possibilidades dramáticas desse encontro, Gomes optou por trafegar na contramão do cinema "de mercado", empobrecido pela televisão e empetecado pela publicidade, que se faz hoje no Brasil e no mundo.
Em vez da redundância expositiva e da ênfase melodramática dos filmes que tratam o espectador como uma criança, "Cinema, Aspirinas e Urubus" investe na parcimônia, no "menos é mais", que deixa ao público espaço para pensar.
Nada, portanto, de locução em "off", nada de música induzindo o público a esta ou aquela emoção, nada de diálogos explicativos, nada de montagem que imponha uma visão única do objeto abordado.
O filme é feito em grande medida de silêncios e elipses, estas últimas entendidas não apenas no sentido temporal, como também espacial. Um exemplo: em certa cena, o alemão dá ao amigo brasileiro algo que está fora do quadro. O espectador é instado a supor do que se trata -o que só vai se confirmar duas cenas depois.
A essa economia narrativa corresponde um despojamento estético análogo. Não há nada de ornamental na fotografia (nenhum céu exuberante, nenhum cacto na contraluz do crepúsculo), o que não quer dizer que a apreensão da realidade seja ingenuamente "natural" ou documental.
O que se dá é uma operação de síntese e de depuração, que inclui uma redução do espectro cromático a um tom meio sépia, com a luz no limite de "estourar". Não é um suposto "sertão real", mas é o sertão visto pelo olhar de quem conta a história. É um sertão imaginado, ou inventado, pela ficção e pela memória.
Não é casual que o filme comece com a tela branca por excesso de luz e vá aos poucos alcançando a abertura e o foco justos para apresentar personagem e ambiente, com o mesmo processo sendo invertido no final. Há aí toda uma estética lacônica e poderosa.
Nada disso teria efeito se não fosse a competência dos dois atores principais, o brasileiro João Miguel e o alemão Peter Ketnath, e a perfeita alquimia entre os dois, feita de comunhão humana e tensão cultural.


Cinema, Aspirinas e Urubus
    
Direção: Marcelo Gomes
Com: Peter Ketnath, João Miguel
Quando: a partir de hoje nos cines Cine Bombril e circuito


Texto Anterior: "Não quero rótulos. O que faço é cinema"
Próximo Texto: Mônica Bergamo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.