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CRÍTICA
"Road movie" sertanejo celebra a diferença
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Não foi à toa que "Cinema,
Aspirinas e Urubus" ganhou prêmios importantes em
Cannes, no Rio e em São Paulo.
Desde "Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos, não se
via num filme realista brasileiro (Glauber é outra história)
ambientado no sertão uma tamanha adequação entre estética e tema, entre ação narrada e
modo de narrar.
O que se conta no longa-metragem de estréia de Marcelo
Gomes é o encontro entre um
alemão que vende aspirinas pelas cidades do interior nordestino e um sertanejo que busca
escapar da seca indo para a cidade grande. O ano é 1942,
quando o acirramento da Segunda Guerra acaba por forçar
o relutante governo de Getúlio
Vargas a entrar no conflito.
O alemão foge da guerra, o
brasileiro foge da miséria.
Companheiros de viagem, eles
formam uma amizade que põe
em relevo diferenças culturais,
impasses históricos, aspirações
díspares. A relação dos dois
com a população sertaneja é
mediada pelos filmes que eles
exibem em praça pública.
Para explorar ao máximo as
possibilidades dramáticas desse encontro, Gomes optou por
trafegar na contramão do cinema "de mercado", empobrecido pela televisão e empetecado
pela publicidade, que se faz hoje no Brasil e no mundo.
Em vez da redundância expositiva e da ênfase melodramática dos filmes que tratam o
espectador como uma criança,
"Cinema, Aspirinas e Urubus"
investe na parcimônia, no "menos é mais", que deixa ao público espaço para pensar.
Nada, portanto, de locução
em "off", nada de música induzindo o público a esta ou aquela emoção, nada de diálogos explicativos, nada de montagem
que imponha uma visão única
do objeto abordado.
O filme é feito em grande medida de silêncios e elipses, estas
últimas entendidas não apenas
no sentido temporal, como
também espacial. Um exemplo: em certa cena, o alemão dá
ao amigo brasileiro algo que está fora do quadro. O espectador é instado a supor do que se
trata -o que só vai se confirmar duas cenas depois.
A essa economia narrativa
corresponde um despojamento estético análogo. Não há nada de ornamental na fotografia
(nenhum céu exuberante, nenhum cacto na contraluz do
crepúsculo), o que não quer dizer que a apreensão da realidade seja ingenuamente "natural" ou documental.
O que se dá é uma operação
de síntese e de depuração, que
inclui uma redução do espectro
cromático a um tom meio sépia, com a luz no limite de "estourar". Não é um suposto
"sertão real", mas é o sertão
visto pelo olhar de quem conta
a história. É um sertão imaginado, ou inventado, pela ficção
e pela memória.
Não é casual que o filme comece com a tela branca por excesso de luz e vá aos poucos alcançando a abertura e o foco
justos para apresentar personagem e ambiente, com o mesmo processo sendo invertido
no final. Há aí toda uma estética lacônica e poderosa.
Nada disso teria efeito se não
fosse a competência dos dois
atores principais, o brasileiro
João Miguel e o alemão Peter
Ketnath, e a perfeita alquimia
entre os dois, feita de comunhão humana e tensão cultural.
Cinema, Aspirinas e Urubus
Direção: Marcelo Gomes
Com: Peter Ketnath, João Miguel
Quando: a partir de hoje nos cines Cine Bombril e circuito
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