São Paulo, sexta-feira, 11 de novembro de 2005

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CRÍTICA

Diretor revê a América com a ironia habitual

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

A inventividade e o espanto ficaram para trás, é verdade. Ficaram em "Dogville", o primeiro filme de Lars von Trier dedicado à cultura americana. "Manderlay" retoma o mesmo sistema cenográfico (com o cenário naturalista substituído por uma planta dos locais) e a mesma personagem central, a jovem Grace.
O mais certo seria dizer os mesmos personagens centrais, pois, além da jovem, existe o protagonista ausente -seu pai, o gângster. Grace continua a representar a boa consciência da América.
Desta vez, a caravana com a garota desloca-se até o Sul profundo, até Manderlay, onde Grace descobre uma fazenda com escravos.
Como estamos nos anos 30, ela passará por uma crise de indignação profunda. Onde já se viu uma coisa dessas? Uma fazenda com senzala e senhora, onde os negros apanham! Grace precisa fazer alguma coisa.
Grace não é propriamente uma aristocrata. Se é para enfrentar a escravatura, ela lança mão de capangas do pai, que darão força a suas belas idéias: emancipar os negros, levar-lhes a consciência da liberdade.
Von Trier é um dinamarquês dotado de estranho humor, que faz de seu filme um lugar de puro pensamento, onde não existe nem dia nem noite nem natureza. Manderlay é um não-lugar. Cultiva-se a terra, mas não se vê sinal das estações do ano, pois não há dia ou noite, frio ou calor. Há o marrom permanente, uma hora sem hora, uma cor sem cor. Nada que não seja pensamento.
O raciocínio que desenvolve é cheio de ironia -como sempre que Von Trier trata dos EUA. Uma ironia que começa com sua afirmação de que nunca pôs os pés nos EUA. E que continua com esses estranhos escravos, que seguem sua nova líder como até há pouco seguiam cegamente sua senhora.
Grace é um apóstolo da liberdade, uma pura americana. Mas ela carrega algo bem dinamarquês, um protestantismo pouco propenso a aceitar as limitações e fraquezas humanas.
Com isso, "Manderlay", dando seqüência à saga de "Dogville", explica ainda melhor o nome do primeiro filme da série, onde o "dog", de Dogville, não vem de cachorros, mas do caráter dogmático da heroína, da postura absolutista que se impõe por trás de sua figura cada vez mais doce. E ela se chama Grace, designando a graça -aquela que por sua ação pode levar a salvação aos homens.
Ainda não consegui descobrir se Lars von Trier não suporta as fraquezas humanas ou se, mais condescendente, as observa com amarga ironia.


Manderlay
Idem
   
Direção: Lars von Trier
Produção: Dinamarca/Suécia/ Holanda/França/Alemanha/EUA, 2005
Com: Bryce Dallas Howard, Danny Glover, Willem Dafoe
Quando: a partir de hoje no Cine Bombril, Lumière e circuito


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