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CRÍTICA
Diretor revê a América com a ironia habitual
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
A inventividade e o espanto ficaram para trás, é
verdade. Ficaram em "Dogville", o primeiro filme de Lars
von Trier dedicado à cultura
americana. "Manderlay" retoma o mesmo sistema cenográfico (com o cenário naturalista
substituído por uma planta dos
locais) e a mesma personagem
central, a jovem Grace.
O mais certo seria dizer os
mesmos personagens centrais,
pois, além da jovem, existe o
protagonista ausente -seu
pai, o gângster. Grace continua
a representar a boa consciência
da América.
Desta vez, a caravana com a
garota desloca-se até o Sul profundo, até Manderlay, onde
Grace descobre uma fazenda
com escravos.
Como estamos nos anos 30,
ela passará por uma crise de indignação profunda. Onde já se
viu uma coisa dessas? Uma fazenda com senzala e senhora,
onde os negros apanham! Grace precisa fazer alguma coisa.
Grace não é propriamente
uma aristocrata. Se é para enfrentar a escravatura, ela lança
mão de capangas do pai, que
darão força a suas belas idéias:
emancipar os negros, levar-lhes a consciência da liberdade.
Von Trier é um dinamarquês
dotado de estranho humor,
que faz de seu filme um lugar
de puro pensamento, onde não
existe nem dia nem noite nem
natureza. Manderlay é um não-lugar. Cultiva-se a terra, mas
não se vê sinal das estações do
ano, pois não há dia ou noite,
frio ou calor. Há o marrom permanente, uma hora sem hora,
uma cor sem cor. Nada que não
seja pensamento.
O raciocínio que desenvolve
é cheio de ironia -como sempre que Von Trier trata dos
EUA. Uma ironia que começa
com sua afirmação de que nunca pôs os pés nos EUA. E que
continua com esses estranhos
escravos, que seguem sua nova
líder como até há pouco seguiam cegamente sua senhora.
Grace é um apóstolo da liberdade, uma pura americana.
Mas ela carrega algo bem dinamarquês, um protestantismo
pouco propenso a aceitar as limitações e fraquezas humanas.
Com isso, "Manderlay", dando seqüência à saga de "Dogville", explica ainda melhor o nome do primeiro filme da série,
onde o "dog", de Dogville, não
vem de cachorros, mas do caráter dogmático da heroína, da
postura absolutista que se impõe por trás de sua figura cada
vez mais doce. E ela se chama
Grace, designando a graça
-aquela que por sua ação pode levar a salvação aos homens.
Ainda não consegui descobrir se Lars von Trier não suporta as fraquezas humanas ou
se, mais condescendente, as
observa com amarga ironia.
Manderlay
Idem
Direção: Lars von Trier
Produção: Dinamarca/Suécia/
Holanda/França/Alemanha/EUA,
2005
Com: Bryce Dallas Howard, Danny
Glover, Willem Dafoe
Quando: a partir de hoje no Cine
Bombril, Lumière e circuito
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