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Comentário
Um dia alguém relembrará as grandes memórias do pequeno Saramago
JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA
Orhan Pamuk venceu o
Nobel da Literatura no
mês passado. Mérito
artístico? Não duvido. Mas
também não duvido que Pamuk venceu por motivos políticos: ao questionar publicamente um velho tabu nacional (o
massacre de armênios e curdos
às mãos de Istambul), Pamuk
pisou o risco, ganhou o Jackpot.
Espantados? Não estejam.
Basta consultar a lista dos Nobel nos últimos dez ou 20 anos
para ficarem assombrados com
a mediania dos escritores. Toni
Morrison? Nadine Gordimer?
José Saramago? Sim, os livros
não convencem. Mas, em todos
os casos, existe uma "política"
que convence, e cada nome serve para Estocolmo preencher a
cota respectiva.
Nadine Gordimer é mulher
(e anti-apartheid). Morrison
também (e negra). E, sobre Saramago, a história é conhecida:
em 1992, um membro do governo português decidiu censurar
Saramago, impedindo o livro
do homem de concorrer a um
prêmio europeu qualquer. O
romance chamava-se "O Evangelho Segundo Jesus Cristo"
(penoso), e o governo entendia
que a obra representava uma
"blasfêmia" para um país majoritariamente católico.
A estupidez sempre foi um
bálsamo para cabeças despertas, e Saramago, honra lhe seja
feita, sempre foi uma. Em gesto
magnânimo, o nosso José afirmou publicamente que não estava mais disposto a viver na
sua pátria amada. Melhor o exílio no país ao lado, onde não era
perseguido ou silenciado pelas
autoridades oficiais. Não riam.
A Academia Sueca gostou do
número, e o Prêmio Nobel chegou logo a seguir.
O caso é interessante por
dois motivos. Primeiro, porque
se a idéia era "silenciar" Saramago, ele nunca mais parou de
falar, dentro e fora de Portugal.
E, depois, porque o episódio,
obviamente indefensável,
transporta um cheiro de ironia:
censurar Saramago é como estripar Jack, o Estripador. Uma
redundância.
Foi 1975. Portugal passara
por uma revolução tranqüila a
25 de abril de 1974, mas rapidamente descera à loucura revolucionária das esquerdas, com
prisões arbitrárias, ocupação
de terras e uma "reforma agrária" que acabaria por liqüidar
economicamente o país durante longos e bons anos.
Saramago era diretor-adjunto do "Diário de Notícias" e, nos
meses quentes e em editoriais
históricos (mas obviamente
não publicados, e não publicáveis, nas "Obras Completas" do
Nobel), o futuro "humanista"
destilava crueldade e ódio contra os "reacionários" que se
opunham à loucura reinante e
não desejavam que Portugal seguisse o modelo soviético, ou
cubano. Aliás, o "humanista"
Saramago não apenas denunciava os traidores externos como não hesitava em sanear os
internos, despedindo os "contra-revolucionários" do jornal
que não aderiam à causa. Liberdade? Sem dúvida. Mas a liberdade tem uma cor e um partido.
E o partido é o Partido Comunista Português, uma relíquia stalinista, ainda viva (ou
semiviva) no Parlamento lusitano, capaz de defender a "democracia" da Coréia do Norte e
receber Fidel Castro com
honras de estadista. Saramago
é militante, ocasionalmente
candidato (nas eleições européias, em lugar cuidadosamente não-elegível) e, como qualquer crente da seita, um amigo
das últimas tiranias que ainda
prendem ou fuzilam opositores. Desconheço opinião sobre
a Coréia. Mas conheço a opinião sobre Cuba. É demasiado
obscena para merecer uma linha de respeito.
Kafka e Borges
Nada disto invalida a arte de
Saramago? Fato. Descontando
a natureza convencional da
narrativa; a evidente influência
temática de Kafka e Borges; e a
inspiração explícita dos pregadores portugueses na construção do tom estilístico e moral
(não apenas António Vieira,
mas os medievais, como Álvaro
Pais e António de Lisboa), Saramago é um escritor interessante, oscilando entre livros notáveis ("O Ano da Morte de Ricardo Reis") e medíocres (sobretudo no pós-Nobel, "A Caverna"
ou "Ensaio sobre a Lucidez").
Mas Saramago perde no resto. Primeiro, em termos literários, perde por comparação
com os seus contemporâneos,
como José Cardoso Pires ou
Agustina Bessa-Luís. O primeiro acabaria por falecer em 1998,
mal lido e pouco amado. A segunda, viva e ativa, é provavelmente a mais brilhante escritora portuguesa do século 20.
E, para acabar, Saramago
perde na história política do
nosso tempo. Não será caso
único: Céline ou Sartre são provas biográficas de que o talento
estético pode conviver com a
aberração ética. Com ideologias inumanas que, no "grande
altar das abstrações", exigiram
dos seres humanos o sacrifício
das próprias vidas.
Um dia alguém irá relembrar
essa história e o papel do Nobel
nela. Serão as grandes memórias de um pequeno Saramago.
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