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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
Poesia das ex-feras
Marco Lucchesi encarna nova vaga de uma poesia erudita,
tomada de memória mítica e de aspiração órfica
QUANDO A força contestadora
das marés modernistas já refluía, sem que o essencial de
sua conquista -a possibilidade de
uma forma tensa e irônica, aberta à
variedade da experiência moderna- se anulasse, uma grita geral voltou-se contra a virada classicizante
de alguns poetas de peso. Antes que
mescla estilística e quebra de decoro
virassem receita, degenerando em
maneira, Jorge de Lima, Murilo
Mendes e Drummond, por exemplo,
mudaram o rumo de sua pesquisa
lingüística na lírica, renovando uma
dicção elevada e readmitindo um
sublime mais depurado, nos temas e
na forma, ainda que tributário da
militância vanguardista.
Num ensaio mais ou menos contemporâneo a esta guinada ("Três
Poemas sobre o Êxtase: John Donne, San Juan de la Cruz, Richard
Wagner", de 1949), polemizando
com o poeta Karl Schapiro, o crítico
Leo Spitzer advertia contra o risco
de um persistente lugar-comum da
imaginação romântica. É preciso a
todo custo dissociar o gênero lírico
do véu de etéreo e inexplicável: a
poesia se faz de palavras que "pela
magia do trabalho prosódico do poeta alcançam um sentido-além-do-sentido", cabendo ao crítico demonstrar, analítica e pacientemente, como mesmo "alçada pelo poeta
a um plano de irracionalidade [...] ela
(a linguagem poética) não deixa de
manter seus laços com a linguagem
normal, o mais das vezes racional".
A longa digressão vem a propósito
do lançamento recente de "Meridiano Celeste & Bestiário", de Marco
Lucchesi, poeta, professor e tradutor carioca e de certa vertente que
sua poesia de vocação filosófica e
tom grandioso emblematicamente
representa, incluindo nomes como
o de Alexei Bueno, entre outros.
"Sphera", "Bizâncio", "Saudades do
Paraíso", "Teatro Alquímico": o desfile de títulos de livros anteriores já
sugere que, hoje, depois do rigor
programático do concretismo e da
labilidade marginal, Lucchesi encarna nova vaga de uma poesia erudita,
tomada de memória mítica e aspiração órfica. Nisto, é um leitor fiel de
Jorge de Lima.
O "eu" a que dá voz pretende imediata ressonância cósmica, como
confessa a estrofe seguinte: "A noite
é fria/ e as estrelas/ brilham ao longe// é preciso sofrer/ a vastidão/ como quem se entrega/ ao sacrifício de
um Deus// passei da insônia escura/
ao candor da Via Láctea". Mas o que
no autor da "Invenção de Orfeu" é
reinvenção da imagem, hermética
resistência e angústia criativa, o elemento conflitivo, concretamente
afirmado na linguagem, aqui se perde, mesmo quando formalmente
enunciado: "levo em silêncio/ um
pacto/ de armistício// às jovens cidades/ que moram/ nos ermos de
mim// e tramam rudes sedições".
Sua poesia reclama que o "Marco
Lucchesi/ nuvem/ paquiderme//
fera abismo/ sem fundo/ anjo da
terra// monstro de/ cega e cabal/
contradição" seja mais que declaração de intenções e evocação de um
mito romântico, desempregado e
sem função nos dias que correm.
MERIDIANO CELESTE & BESTIÁRIO
Autor: Marco Lucchesi
Editora: Record
Quanto: R$ 27,90 (128 págs.)
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