São Paulo, sábado, 11 de novembro de 2006

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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

Poesia das ex-feras

Marco Lucchesi encarna nova vaga de uma poesia erudita, tomada de memória mítica e de aspiração órfica

QUANDO A força contestadora das marés modernistas já refluía, sem que o essencial de sua conquista -a possibilidade de uma forma tensa e irônica, aberta à variedade da experiência moderna- se anulasse, uma grita geral voltou-se contra a virada classicizante de alguns poetas de peso. Antes que mescla estilística e quebra de decoro virassem receita, degenerando em maneira, Jorge de Lima, Murilo Mendes e Drummond, por exemplo, mudaram o rumo de sua pesquisa lingüística na lírica, renovando uma dicção elevada e readmitindo um sublime mais depurado, nos temas e na forma, ainda que tributário da militância vanguardista.
Num ensaio mais ou menos contemporâneo a esta guinada ("Três Poemas sobre o Êxtase: John Donne, San Juan de la Cruz, Richard Wagner", de 1949), polemizando com o poeta Karl Schapiro, o crítico Leo Spitzer advertia contra o risco de um persistente lugar-comum da imaginação romântica. É preciso a todo custo dissociar o gênero lírico do véu de etéreo e inexplicável: a poesia se faz de palavras que "pela magia do trabalho prosódico do poeta alcançam um sentido-além-do-sentido", cabendo ao crítico demonstrar, analítica e pacientemente, como mesmo "alçada pelo poeta a um plano de irracionalidade [...] ela (a linguagem poética) não deixa de manter seus laços com a linguagem normal, o mais das vezes racional".
A longa digressão vem a propósito do lançamento recente de "Meridiano Celeste & Bestiário", de Marco Lucchesi, poeta, professor e tradutor carioca e de certa vertente que sua poesia de vocação filosófica e tom grandioso emblematicamente representa, incluindo nomes como o de Alexei Bueno, entre outros.
"Sphera", "Bizâncio", "Saudades do Paraíso", "Teatro Alquímico": o desfile de títulos de livros anteriores já sugere que, hoje, depois do rigor programático do concretismo e da labilidade marginal, Lucchesi encarna nova vaga de uma poesia erudita, tomada de memória mítica e aspiração órfica. Nisto, é um leitor fiel de Jorge de Lima.
O "eu" a que dá voz pretende imediata ressonância cósmica, como confessa a estrofe seguinte: "A noite é fria/ e as estrelas/ brilham ao longe// é preciso sofrer/ a vastidão/ como quem se entrega/ ao sacrifício de um Deus// passei da insônia escura/ ao candor da Via Láctea". Mas o que no autor da "Invenção de Orfeu" é reinvenção da imagem, hermética resistência e angústia criativa, o elemento conflitivo, concretamente afirmado na linguagem, aqui se perde, mesmo quando formalmente enunciado: "levo em silêncio/ um pacto/ de armistício// às jovens cidades/ que moram/ nos ermos de mim// e tramam rudes sedições".
Sua poesia reclama que o "Marco Lucchesi/ nuvem/ paquiderme// fera abismo/ sem fundo/ anjo da terra// monstro de/ cega e cabal/ contradição" seja mais que declaração de intenções e evocação de um mito romântico, desempregado e sem função nos dias que correm.


MERIDIANO CELESTE & BESTIÁRIO   
Autor: Marco Lucchesi
Editora: Record
Quanto: R$ 27,90 (128 págs.)


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