São Paulo, sábado, 11 de novembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DRAUZIO VARELLA

Luizão, o bem amado

Uma noite, conheceu Creuza; viveram dois anos em harmonia, até que a cadeia os separou

LUIZÃO DIZ que entrou para o crime por conta própria, não por lhe faltar amor.
-Minha família nem a sociedade têm culpa das mancadas que cometi.
O pai morreu num desastre com o caminhão carregado de cana-de-açúcar, num dia; ele nasceu no outro. Viúva, a mãe foi trabalhar na casa da família que teve a primeira Frigidaire de Campinas, onde o menino foi criado com carinho:
-Estudei nos melhores colégios da cidade, ia de carro para a escola, fim de semana na fazenda, tudo o que um filhinho de papai tem.
Aos dez anos, mudou-se para São Paulo porque a mãe foi pedida em casamento por um português, sócio de uma banca de jogo do bicho no Bexiga, que o acolheu como filho:
-Ganhei um pai. Nunca brigou comigo, só dava conselho. Viveu com minha mãe até morrer: meu bem daqui, benzinho dali. Português com negra faz tempo que dá certo.
Depois de um ultimato da mãe para que se decidisse entre estudar ou trabalhar, Luizão abandonou o ginasial e arranjou emprego numa metalúrgica. Vieram as más companhias, e ele tomou uma decisão definitiva:
-Nem estudo nem trabalho.
Começou a freqüentar a rua Augusta, de calça boca de sino, sapato plataforma, cabelo black power. De madrugada, assaltavam as lojas da região e fugiam na Kombi de um comparsa. Mulato de olhar bovino, mão aberta, sempre cercado de mulheres, acabou adotado por Quinzinho -com inúmeras passagens pela Casa de Detenção- e Hiroito, o rei da Boca do Lixo. Na primeira cadeia que pegou, fez amizade com seu Horácio, comandante do tráfico no bairro do Carrão (por pouco escapou de ser fuzilado pelo Esquadrão da Morte junto com ele), e começou a traficar.
No início, abastecia a Boca com as ampolas de Pervitin que trazia do Paraguai. Depois, trabalhou com maconha, até descobrir coisa melhor:
-Caí de cara na cocaína! Trabalhava como segundo fornecedor: a droga já vinha misturada para mim, 40, 50 quilos, um mês para pagar. Eu misturava um pouco mais e distribuía para o pessoal certo. Dava prazo de 15 dias para trazer o dinheiro. Tudo na palavra. Nunca tomei chapéu!
Uma noite, conheceu Creuza, vulgo Solange Simone, que fazia ponto nas imediações da Major Sertório: branquinha, neta de um ator de chanchada no Teatro Aurora, na avenida São João, e amante de um militar aposentado que foi tomar satisfações com ele ao saber que o casal havia alugado um cômodo num casarão do largo Ana Rosa.
Viveram dois anos em harmonia, até que a cadeia os separou:
-Ela era carismática, parecida com a Barbie. Quando fui preso, a gente se correspondia no maior amor: duas ou três cartas por semana. Até que ela parou de escrever.
A razão do desencontro foi a prisão da moça:
-Ela não ouviu meus conselhos. Não sei em que artigo caiu, só sei que, na Detenção Feminina, se envolveu com a Famigerada, a Neuza Pequena e a Maldita, velhas conhecidas minhas, infelizmente. A última notícia que recebi foi que as quatro tocaram fogo na cadeia e foram transferidas para a penitenciária.
Dez anos mais tarde, no dia em que recebeu o alvará de soltura na Colônia Penal, foi chamado à sala de um diretor com quem se dava mal:
-Porque meu jeito humano de ser feria a sensibilidade dele.
De mau humor, o funcionário avisou que uma mulher que se dizia esposa de Luizão havia telefonado para avisar que viria buscá-lo.
Ele quase disse que só podia ser engano, mas houve por bem não fazê-lo. Sentou em frente à sala do diretor e aguardou.
Não demorou para um Opala SS amarelo de capota de vinil preto brecar no pátio de entrada da Colônia. Era ela, mais velha e mais sedutora:
-Veio de botinha branca, minissaia cor-de-rosa, frasqueira da mesma cor, coletinho, estola com pluma no pescoço. Quando vi aquela mulher de cabelo vermelho, cheia de pulseira e de anel nos dedos, ri e dei um abraço agarrado nela.
O diretor não gostou:
-Aqui dentro, não! A senhora faça o favor de esperar lá fora.
Luizão estranhou:
-Só por causa do jeito dela, senhor? Minha esposa passou dez anos na França e na Alemanha, por isso nunca veio me visitar. Por acaso, o senhor está abismado com a moda que ela adotou no exterior? Eu também, mas sou humilde para reconhecer: ela está atualizada, eu é que não.
Solange Simone entregou a chave nas mãos dele:
-O tanque está cheio. Agora é com você.
Cavalheiro, ele abriu a porta do Opala para ela, deu a volta, sentou ao volante e cantou os pneus na saída.


Texto Anterior: Música: TNT exibe o Grammy de Shakira
Próximo Texto: Análise/música: Morte de Mario Zan deixa órfã a música caipira
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.