São Paulo, quarta-feira, 11 de novembro de 2009

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MARCELO COELHO

As ruínas de dentro


Nas fotos de Polidori, todo tipo de mobília parece amontoar-se como corpos fuzilados


OS CARROS até que são bastante novos, a grama está bem cortada, o céu tem um azul de louça, as casas de tijolos vermelhos não sofreram grande estrago.
Mas a foto de Robert Polidori foi tirada pouco depois da passagem do furacão Katrina por Nova Orleans. Os carros parecem ter deslizado dos telhados como de um tobogã.
A parte traseira está suspensa no ar, e os faróis enfiados no chão dão, a esses automóveis, a aparência de alguns animais selvagens que se inclinassem para tomar água em algum lago africano. Só que está tudo seco agora, depois da inundação.
Em outra fotografia, vemos um carro branco estacionado diante de uma típica casa americana, revestida de madeira igualmente branca, com as tábuas largas levemente superpostas umas às outras, como uma persiana fechada. Percebe-se que houve uma inundação apenas pelas marcas sucessivas que o barro foi deixando sobre a tinta do carro.
As fotos de Robert Polidori, em formato bem grande, podem ser vistas até amanhã no Museu da Casa Brasileira. Se não der mais tempo, experimente o livro, nada pequeno aliás, editado pelo Instituto Moreira Salles.
Não há apenas fotos da tragédia de Nova Orleans. Robert Polidori esteve em Amã, na Jordânia, em Alexandria, no Egito, em Havana e em Pripyat, na Ucrânia, cidade vizinha a Chernobyl.
O que sobrou do vazamento daquela usina nuclear parece quase pior do que uma explosão. A sala de aulas, o quarto de brinquedos, o berçário de um jardim da infância estão mais do que abandonados; é como se um gigante furioso quisesse ter varrido tudo para um canto, esquecendo-se entretanto de alguns detalhes.
Cubos coloridos permanecem empilhadinhos em ordem, uma boneca azul continua sentada em sua cadeira de brinquedo, enquanto batentes de portas foram arrancados, mesas brancas se empilham como cadáveres depois de um massacre, e uma espécie de vômito negro cobre tudo.
É no interior das casas de Nova Orleans, entretanto, que as imagens de Polidori se tornam mais tocantes.
De novo, todo tipo de mobília e objeto parece amontoar-se como uma multidão de corpos fuzilados. Tudo o que um dia representou certo padrão de conforto doméstico -um ventilador de teto, um sofazão vermelho estofado, luminárias talvez "moderníssimas" em 1960- está agora compactado num ambiente intransitável.
Cada sala atingida pela enchente parece, assim, "superpovoada", mas não de gente. Os móveis se apertam uns aos outros, como no desespero causado pela ausência dos donos.
Muito se escreveu, a partir do Romantismo, sobre a beleza das ruínas -o que restou de Roma ou de um mosteiro, entre ervas daninhas, sob a luz da lua, constitui um motivo recorrente para a reflexão melancólica e a imagem pitoresca.
As ruínas de Polidori, ao contrário dessas mais antigas, raras vezes se situam ao ar livre, desfazendo-se na paisagem. São ruínas que se formam dentro de casa; ruínas interiores, se se pode dizer assim.
É o que vemos tanto em alguns antigos teatros e salões aristocráticos de Havana -onde um lustre de cristal se pendura de um teto em pedaços- quanto nas casas pobres da Louisiana. O luxo europeu e o kitsch americano, Versalhes e Wal-Mart, tudo parece mergulhado no lodo de um pesadelo.
A sensação não é de nostalgia romântica; não cabe falar aqui da "ação do tempo" nem das "forças terríveis da natureza". A separação entre o ser humano e o mundo natural, entre o desejo do indivíduo e a sucessão impessoal dos anos e das sociedades, não faz muito sentido nas fotografias de Polidori.
O furacão Katrina (e vem a calhar o fato de que essas catástrofes tenham nome de gente) não aparece; a água da inundação já foi embora, e os moradores dessas casas também. Robert Polidori não retrata as vítimas da destruição, nem as forças que a causaram.
Só as coisas -um forno de micro-ondas, uma pilha de livros, um abajur- parecem pedir socorro; sentimos pena delas. É que o inanimado, o "desumano", tudo aquilo que não tem vida própria, há tempo desapareceu dos objetos com que lidamos no dia a dia.
Aparelhos de TV interagem com seus donos, geladeiras apitam, computadores falam conosco. Seduzem-nos, irritam-nos, são capazes de traições e de caprichos. Ficam doentes e morrem também. As fotos de Polidori registram esse fenômeno no que possa ter de mais trágico -quando não há mais seres humanos à vista.

coelhofsp@uol.com.br


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